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Mais leveza, prudência e harmonia: as lições da pandemia para o novo ano

Oncologista e paliativista, Dalva Yukie Matsumoto comenta as dificuldades dos pacientes nesta fase, os desafios enfrentados, como cuidar de si e ter uma vida melhor.

as lições da pandemia para o novo ano

 

Em todo o mundo, 2020 foi um ano difícil em vários aspectos. Para quem vivencia uma doença, como câncer, os desafios se fizeram ainda maiores: conciliar exames de acompanhamento e distanciamento social e seguir com o tratamento da forma mais segura.

“Essa ameaça do vírus fez a gente parar e pensar não somente nos nossos valores, mas nas nossas prioridades”, comenta Dalva Yukie Matsumoto, oncologista e paliativista. Ela coordena o serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Municipal e é diretora do Instituto Paliar, que oferece pós-graduação em cuidados paliativos e consultoria de organização e serviços sobre o tema.

Para a médica, neste final de ano pandêmico uma reflexão do ponto de vista da qualidade de vida é, em primeiro lugar, tentar viver de forma mais harmônica, procurando sempre estar em equilíbrio com a Natureza e com a nossa natureza interior.

Nesta entrevista para o Instituto Vencer o Câncer (IVOC), Dalva compartilha sua experiência cuidando da saúde de tantos pacientes e lições para quem busca uma vida melhor, e avisa: a forma como morremos tem muito a ver com o modo como vivemos.

 

IVOC – Este foi um ano difícil para todos, de muita tensão e angústia, ainda maiores para pacientes oncológicos. Em sua experiência, quais foram os principais desafios?

Dalva Yukie Matsumoto –  Acredito que a pandemia foi a maior provação que todos nós passamos e para quem está adoecido e os familiares, foi um desafio maior ainda. Muitos pacientes com câncer acabaram ficando meio impedidos de fazer um seguimento adequado.

Quem fazia quimioterapia não interrompeu, mas pacientes que precisam de  controle periódico não conseguiam chegar nos hospitais, porque a grande maioria direcionou atendimento para a covid e outras situações de urgência. O que era eletivo foi adiado, acabou sendo deixado para mais tarde, trazendo bastante angústia para muita gente.

Foi uma grande provação.

 

IVOC – No começo do isolamento social havia muitas dúvidas, medos, as pessoas não tinham noção se deveriam fazer seus exames de rotina. É difícil quando se tem de um lado o câncer e de outro um vírus e você ainda é paciente de risco. Como foi essa vivência?

Dalva – Meu serviço inclui o cuidado paliativo não somente dentro do hospital, mas temos também uma hospedaria e atendimento domiciliar, com muitos pacientes crônicos em doença progressiva avançada que requerem cuidados. Procuramos orientar, acompanhar à distância e em alguns casos mandávamos um médico na residência para examinar o paciente, ou pedíamos exame, quando era fundamental.

No meio desta pandemia, uma percepção ficou ainda maior, pelo risco de se expor ao vírus,  a de que é preciso ter coerência e equilíbrio para viver bem, com ou sem doença.

Eu falo aos meus alunos, pacientes e familiares o quanto a tecnologia, que é maravilhosa e nos permite viver mais e melhor, também acaba sendo uma inimiga, porque começamos a acreditar que ela é capaz de tudo, inclusive salvar infinitamente nossas vidas. Essa percepção também acaba dominando os profissionais da saúde.

 

IVOC – Os avanços mudaram a forma como vemos as doenças e ainda estamos aprendendo a lidar com tantas transformações, não é?

Dalva – Sim. Eu atuava como oncologista e vivenciei o boom do crescimento dos quimioterápicos e da pesquisa do câncer nos anos 1980 e 1990. Quando comecei, a Oncologia nem especialidade era, depois que se transformou em área de atuação, como os cuidados paliativos, e então ganhou o status de especialidade.

Havia o estigma de que câncer mata rapidamente e nós batalhávamos muito com os poucos recursos de quimioterapia que se tinha e tentávamos pelo menos fazer diagnóstico precoce, para poder intervir precocemente e oferecer melhor possibilidade de reversibilidade; não se falava em cura de câncer, que era altamente recidivante.

Bem no final do século passado começaram a descobrir vários novos elementos, a falar em imunologia no câncer e, aí, o céu é o limite. Todo mundo passou a acreditar que a gente poderia vencer essa batalha.

Fala-se muito em luta contra o câncer, vemos a doença como um inimigo a ser combatido. Às vezes eu, como médica, me questiono o quanto isso é interessante, porque coloca no paciente uma obrigatoriedade de ser forte, de ter armas. Se não consegue vencer é porque perdeu. Os médicos também recebem nas costas esse fardo, a obrigação de curar. Vejo ainda hoje muitos colegas com dificuldade e sofrimento quando não conseguem atingir o objetivo maior que na cabeça dessas pessoas é a cura.

Isso me trazia uma angústia pessoal muito grande, porque percebia que por mais que eu estudasse, me aplicasse e cuidasse bem dos pacientes, muitos morriam – e, o pior, morriam em grande sofrimento. Isso me fez ver o cuidado paliativo como uma saída. Como eu poderia lidar com o sofrimento do outro se não sabia nem o que fazer com o meu, que era enorme por sentir que não cumpria o meu papel?

 

IVOC – A reflexão passa também pela questão da saúde, questionar-se com que saúde eu quero envelhecer?

Dalva – Temos que fazer uma escolha muito cedo, investir na qualidade de vida e na saúde, para que a vida transcorra e possamos passar pelo envelhecimento com serenidade. Por mais que se consiga prolongar a vida, o processo de envelhecimento ocorre e pode ser saudável, bom e feliz ou pode ser desregrado e cheio de complicações se eu levar uma vida desregrada.

É importante pensar quanto eu preciso estar equilibrado, do ponto de vista de alimentação, das minhas práticas, para ter saúde durante todas as fases da vida. Nunca é tarde para repensar e investir em qualidade de vida.

 

IVOC – O que considera qualidade de vida?

Dalva – Para mim, qualidade de vida é conseguirmos manter o equilíbrio entre o que fazemos e o que desfrutamos. Venho de uma família de pais humildes, que não tiveram acesso à educação: meu pai é mecânico, minha mãe era filha de lavradores, sem ensino formal de grande monta. Vi meus pais trabalhando muito, fazendo de tudo para as filhas terem educação. Somos três irmãs, duas médicas e uma médica veterinária; isso aconteceu graças a um enorme sacrifício dos meus pais e dos meus avós. Eles eram migrantes, que fazem essa escolha de investir na geração futura.

Tento investir em mim e no meu futuro pensando em todo sacrifício para me proporcionar uma vida com um pouco mais de tranquilidade; imagino uma velhice em que ainda possa ser produtiva, deixar um legado, ensinar às pessoas o que aprendi no decorrer da vida.

 

IVOC – Qual é um dos principais aprendizados que teve em sua experiência como médica, como lição de vida?

Dalva – O que observo cuidando de pacientes no final da vida é que independentemente da doença e das complicações que pode trazer, há uma grande diferença que influencia mesmo que o paciente esteja muito adoecido, na terminalidade da vida.

Tenho pacientes que se sentem felizes e conseguem aproveitar a alegria de viver, as coisas boas da vida e das relações até o último momento. São aquelas pessoas mais resilientes, que vivenciam suas dificuldades encarando-as de frente e tentando usar a energia adequada para o enfrentamento no momento adequado. Brinco com minha equipe que a gente vive e morre da mesma forma; aqueles pacientes que morrem mal, são os que viveram mal, pessoas mais ranzinzas, mais irritadiças, mais cruéis consigo e com os outros, que enxergam as coisas de uma maneira mais negativa. Uma coisa que eu levo para a minha vida pessoal é tentar ser leve, apesar de todas as dificuldades.

 

IVOC – Como leva esse conceito para o cotidiano?

Dalva – Procuro enxergar cada grande problema e desafio como uma oportunidade de crescimento pessoal e espiritual. Como humanos, temos fragilidades e potências; quando conseguimos  enxergar nossas fragilidades como elementos ou formas de melhoria ou de aprendizado, temos clareza para buscar nossas potências e superar dificuldades.

Quando começou a pandemia, falaram que eu teria que dar aula online e respondi que era impossível ensinar Comunicação em cuidados paliativos assim – sou de uma geração analógica, do olho no olho. Tive que me instrumentalizar tecnologicamente, o que foi um desafio enorme e desgastante; saio com uma sensação de vitória porque consegui e foi um aprendizado. Tenho quase 70 anos, mas me sinto jovem e com muita energia.

Para a pessoa que adoece, os desafios podem ser uma forma de superação, de crescimento pessoal, mesmo que não atinja a cura, passar por esse caminho com maior leveza e acrescentando valores.

 

IVOC – A dra. comentou sobre a resiliência que ajudou as pessoas nesta pandemia a passarem mais facilmente por situações difíceis. É um pouco como aquela ideia do rio, que contorna as pedras e segue seu curso?

Dalva – Isso, mas por outro lado precisamos lembrar que não é uma atitude fácil de se tomar, não gostaria de banalizar e achar que todos deveriam fazer com tranquilidade. Cada um de nós tem uma história, cresceu em uma família e um núcleo afetivo que lida com doenças, perdas e com a morte de formas diferentes.

Tive a sorte e o privilégio de vir de uma família oriental que trabalhava a vida e a morte com uma certa leveza e naturalidade, não sem tristeza, não sem pesar, mas como processos naturais da vida e que deveríamos nos instrumentalizar não somente fisicamente, mas emocional e espiritualmente para enfrentar. Hoje vejo o quanto me ajudou, inclusive profissionalmente.

Digo aos meus pacientes e seus familiares que não é um processo fácil, mas quando temos consciência de que é possível, começamos a trabalhar nesse caminho. Sugiro que as pessoas busquem profissionais e amigos que possam auxiliar nesta jornada, que estejam disponíveis a seguir junto nesse caminho árduo, apoiando nos momentos de fragilidade e ajudando a ver saídas. A pandemia tem nos mostrado que o caminho não pode ser solitário, como diz aquela afirmativa: sozinho eu vou mais rápido, mas juntos chegamos mais longe – e com maior leveza, vivendo com felicidade.

 

IVOC – Quando fala no equilíbrio da doença, do viver bem e escolher as prioridades, o que seria esse posicionamento no caso do paciente oncológico?

Dalva – Toda doença, e principalmente o câncer, pode nos trazer limitações. Muitas vezes temos um ideal de conseguir recuperar 100% o que éramos antes da doença e nem sempre é possível. Quando digo a um paciente oncológico para vivenciar seus momentos, o maior desafio é conseguir viver com as limitações que às vezes o tratamento impõe, com efeitos colaterais de enjôo, dificuldade para se alimentar e viver socialmente, perda de cabelo, entre tantos outros que afetam a imagem corporal e a autoestima, além da relação social com o outro.

A diferença está em como lidar com essas limitações que a doença impõe – se ficar brigando com elas, gastará muita energia e não vai atingir o objetivo, porque o caminho sempre terá pedras. Como na história do rio. Nem sempre é fácil conseguir, mas é o objetivo.

 

IVOC – A pessoa pode não conseguir de imediato, mas ter essa meta para viver melhor.

Dalva – Exato. E também conversar  com os profissionais e ver o que podem fazer para minimizar o impacto dos efeitos colaterais e ajudar emocionalmente a superar as dificuldades. O importante é o paciente observar que, primeiro, não é o fim da vida; segundo, vai requerer muita energia e precisa se cercar de pessoas competentes para ajudar nessa trajetória, algumas para ajudar a recuperar a coragem e outras apenas para entender que é normal ficar triste, querer refletir sobre a vida; ficar triste é humano e faz parte do processo. Precisamos dessa pausa para elaborar nossos próprios sentimentos e buscar, no fundo da nossa alma, toda nossa força para superar e continuar no caminho.

Cada um vivencia no tempo e da forma que consegue, sem se comparar com o outro.

Eu diria para as pessoas não terem medo do medo e da tristeza. Não terem medo do que sentem e compartilhar com os profissionais suas preocupações e temores. Podem falar da sua raiva, indignação e descontentamento.

Nós, médicos, costumamos dizer que o bom paciente é o que aceita o que a gente fala, concorda com o que a gente orienta e ainda agradece. Como paliativista tenho aprendido que o melhor paciente é o que entende o que você explicou, que consegue abrir o coração e ter confiança, sabendo que mesmo que ele manifeste raiva ou dissabor você vai continuar amando-o e tentando ajudá-lo enquanto for necessário.

 

IVOC – Com a pandemia, o que mudou para os médicos e pacientes?

Dalva – Tenho observado que a maioria dos meus colegas vivem momentos muito difíceis, sob muita pressão e cada um reage de forma diferente. Tenho alunos que sucumbiram, tiveram crises emocionais importantes, crise de depressão. Já vínhamos vivenciando um momento difícil na área, com alto índice de depressão e suicídio por causa da pressão do dia a dia, e a pandemia agravou. Por outro lado, como toda dificuldade é desafiadora, os profissionais que conseguiram elaborar tudo isso, que se permitiram adoecer, dar um tempo e se cuidar, saíram mais fortalecidos.

Com relação aos pacientes, para cada um a fase funcionou de forma diferente. Alguns ficaram muito revoltados com a necessidade de ficar isolados, não poder conviver, desfrutar, viajar. Sempre dizia para enxergarem com gratidão a possibilidade de se tratar e passar sem contaminação.

Quando enxergamos tudo isso como provação do mundo, é o universo nos mostrando que teremos que aprender a conviver de forma mais equilibrada. A Natureza está nos mostrando que quando ela está desequilibrada pode ser muito cruel – e a gente faz parte desse equilíbrio.

 

IVOC – O que levamos de experiência na área da saúde para o futuro?

Dalva – Em especial tomar muito cuidado com as notícias que ouvimos. Ao mesmo tempo em que a internet facilita o acesso à informação, somos bombardeados com fake news de gente inescrupulosa que fala uma linguagem pseudocientífica e tenta convencer de mentiras. É preciso ser muito cuidadoso, saber a fonte da informação e validar se é verdade ou só uma maneira de desestruturar as pessoas.

Mesmo como médica, procurando fontes adequadas, às vezes caía em alguma armadilha; imagino a população leiga, com tantos discursos convincentes.

O grande ensinamento é avaliar com muito critério toda informação e procurar fontes oficiais de quem gerencia a saúde no país e no mundo. Não ir para o lado do pânico, lembrar que sempre existe uma alternativa e que a saída é a união de todos tomando atitudes positivas para enfrentamento conjunto. Não é momento de desesperar, mas de ser prudente. Prudência é a palavra mais adequada. Do ponto de vista da bioética, para tomar uma decisão ética adequada diante de um conflito, prudência é fundamental para evitar os extremos.

Neste final de ano pandêmico, se podemos fazer uma reflexão do ponto de vista de qualidade de vida é, em primeiro lugar, tentar viver de forma harmônica, procurando estar em equilíbrio com a Natureza e com a nossa natureza. Nesses momentos de profunda tristeza e medo, até pelo próprio isolamento social, tivemos que entrar em contato com nosso íntimo e nem sempre foi bonito, nem sempre foi agradável, muitas pessoas piraram, porque temos muito estímulo externo. O processo de olhar para dentro de si, tentar se entender como gente, enxergar quais são nossos valores, o que nos faz felizes e qual é o caminho que a gente escolhe para a nossa vida deveria ser nosso principal objetivo. Procurar nos enxergarmos e nos entendermos como humanos, descobrindo o que consideramos adequado e qual nosso conceito de felicidade. Precisamos dizer às pessoas que viver é bom, e que é possível viver com qualidade mesmo diante das adversidades e procurar quem possa nos ajudar a achar esse caminho.

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