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Câncer de pâncreas: os desafios de um tumor silencioso com alta mortalidade

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Um acaso, uma dor forte, uma sorte. É dessa maneira que muitos pacientes descobrem o câncer de pâncreas, esse tumor silencioso, em um estágio em que é possível operar e tratar. Foi assim com a jornalista de 23 anos Gabriela Giantomassi Monteiro de Almeida e com o juiz e professor universitário de 53 anos Erick Cavalcanti Linhares Lima.

Embora os tipos de tumores de pâncreas diagnosticados em ambos sejam bastante diferentes (Erick com adenocarcinoma, que representa de 90% a 95% dos tumores de pâncreas, e Gabriela com um tipo raro, tumor de Frantz, de tratamento mais simples, apenas cirúrgico), suas histórias têm pontos em comum, como a necessidade de cirurgia urgente e um resultado promissor. Uma ótima notícia quando se trata de um câncer que, embora represente aproximadamente 3% de todos os tumores, é responsável por 8% da mortalidade de pacientes com cânceres, como ressalta Ricardo Carvalho, oncologista especialista da área e membro do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer. “A literatura médica indica que até 2030 o tumor de pâncreas será responsável pela segunda causa de morte por câncer no mundo. Enquanto outros tumores têm mais avanços em tratamentos, o de pâncreas está um pouco aquém, mas há avanços também”.

As histórias de Gabriela e Erick têm outros aspectos semelhantes – que acontecem com muitos pacientes de diferentes tipos de tumores -, que é a transformação que a doença trouxe para a vida, uma nova forma de ver o mundo e interagir com ele. São boas inspirações para lembrar que sempre é momento de priorizar a boa saúde e os bons hábitos, qualidade de vida e o contato com as pessoas que amamos.

 

Um susto e muitas transformações

Um pouco antes de completar 23 anos, no início de fevereiro deste ano, Gabriela Giantomassi levou um grande susto quando teve febre alta, de quase 40 graus, e sentiu dor muito forte na região abdominal. Notou ainda mudança em seu apetite. “Minha mãe fez uma comida que eu gosto muito e não senti vontade de comer. Percebi que havia algo esquisito”.

Depois da madrugada inteira com dor e febre, na manhã seguinte foi ao pronto-socorro. Era uma fase de pico da Covid-19 e apesar de não ter outros sintomas, ela e a enfermeira responsável pela triagem pensaram que poderia ser essa doença, por conta da febre. Com o resultado do PCR negativo, a médica decidiu fazer exame físico e ao apertar o local da dor sentiu um volume.

Encaminhada à tomografia com contraste, a jovem ficou no hospital aguardando o resultado. “Veio outra médica e perguntou se eu estava com alguém, pedi para minha mãe entrar comigo e deram a notícia de que eu tinha um tumor na região do pâncreas, que parecia já estar grande, pressionando minha veia. Não conseguiam dizer se era maligno ou benigno. O médico falou que pela experiência acreditava ser maligno e precisava me operar com urgência, porque estava pressionando muito minha veia e ele temia o que poderia acontecer. A dor era provocada pela pressão que o tumor fazia nos meus órgãos”.

Ela ficou internada, realizando exames e se preparando para a cirurgia, durante dez dias. “Fiz biópsia e concluíram que era tumor de Frantz. Explicaram que é um tumor de pâncreas raro que normalmente acomete mulheres jovens, na faixa dos 20 aos 27 anos”, comenta, recordando que foi um baque, já que nunca teve qualquer doença grave. “Nunca quebrei um dedo e sempre tive medo de hospital, de agulha, de tirar sangue. Minha mãe começou a chorar na sala. Eu não conseguia reagir, só escutava e tentava processar, não assimilava a situação”.

Gabriela passou, no dia 10 de fevereiro, por uma cirurgia aberta que durou cerca de sete horas e removeu a cabeça do pâncreas, o duodeno e a vesícula. A nova ligação para o intestino, feita com a cirurgia de Whipple, mudou a forma como seu organismo faz a digestão. Com ajuda da fisioterapeuta, começou a andar três dias após o procedimento.

Como a recuperação é difícil, com muitas dores e ela teve complicações, ficou 12 dias na UTI. “Tive problema com o dreno, que começou a infeccionar, e o intestino paralisou por conta dos remédios que estava tomando: morfina e metadona.  Entrei no automático e tudo que me sugeriam tentar, eu topava. Por ser um tumor raro, muitas vezes os médicos não chegam a um consenso sobre o melhor método. Tive várias complicações na UTI e eles tentaram diversas coisas”.

A paciente considera a reintrodução alimentar a fase mais complicada. Depois de alguns dias de sonda, sem tomar nem água, começou a dieta líquida, dali seguiria para a pastosa até chegar na sólida. Passou muito mal quando começou a ingerir alimentos pastosos e precisou reiniciar o processo. Durante o mês que ficou internada no hospital, perdeu 12 quilos. “Algumas meninas com quem converso, que tiveram o mesmo tipo de câncer, contam que têm muita dificuldade com ganho de massa. O corpo já não aguenta comer uma quantidade grande de comida e a falta da vesícula impede a ingestão de alimentos com gordura, não apenas ruins, como fritura e refrigerante, mas até gordura boa, como azeite, que comecei a reintroduzir na minha alimentação faz cerca de dois meses, e bem pouco. Antes se colocava uma gota na salada já passava mal”.

Gabriela segue acompanhada por nutrólogo e nutricionista, começou a fazer exercícios e se sente muito melhor, apesar de alguns sintomas que ainda a acompanham – dependendo do que come passa mal e tem distensão abdominal. Revela que aprendeu a ouvir um pouco melhor seu corpo e perceber o que pode fazer mal, para evitar.

Com histórico familiar de câncer, outros casos de tumores no aparelho digestivo, fez mapeamento genético, mas o resultado não trouxe uma resposta para o tumor de pâncreas.

Apesar dos desafios, comemora o resultado da cirurgia, que removeu totalmente o tumor de quase 10 centímetros sem necessitar de tratamento complementar. “Saí de lá curada. Foi um momento turbulento, mas felizmente tive muito apoio da família e dos amigos. Saí outra pessoa do hospital, minha cabeça mudou, queria mudar várias coisas, tanto que meses depois deixei o trabalho que estava”.

 

Por acaso

“Foi devastador”. É como Erick Lima define o sentimento diante do diagnóstico no dia 3 de junho deste ano. Depois que um amigo infartou, ele decidiu fazer check up e entre alguns exames havia o ultrassom de rotina, solicitado pelo cardiologista. “O resultado mostrou que minha vesícula estava muito cheia, e eu nunca tive problema de vesícula. Não como nada gorduroso, não fumo, nunca coloquei um cigarro na boca, não bebo nem cervejinha no final de semana e pratico atividade física. Também não tenho idade avançada. Estou fora do perfil de risco para esse câncer”. O teste genético também não deu qualquer alteração que indicasse tendência a esse tumor. “O exame genético deu tendência de 5% para câncer de mama, mas não tenho, não. Estou no 1% que atrapalha a estatística, sem causa determinada”, brinca.

Ainda durante o procedimento de ultrassonografia o profissional pediu para fazer tomografia e, quando tinha acabado de sair do laboratório, Erick recebeu uma ligação para voltar e fazer ressonância. “Tinha certeza que havia alguma coisa errada”. O resultado trouxe o diagnóstico: tumor de um centímetro e meio na cabeça do pâncreas”.

O médico de sua cidade, Boa Vista (RR), teve dificuldade em fechar o diagnóstico. Para confirmar – e ainda com esperança de não ter a doença -, viajou para São Paulo e repetiu os exames, além de realizar outros procedimentos. “Tumor na cabeça do pâncreas era como uma sentença de morte. Lembrei logo do Steve Jobs, do Patrick Swayze e pensei: se eles morreram, como eu vou escapar de um negócio desses?”, recorda. “A previsão era de quatro a seis meses de vida, talvez um ano, dependendo do progresso”.

Durante a endoscopia com punção do tumor teve septicemia e precisou ficar na UTI. “Passei por cirurgia, lavaram meu abdômen em busca de metástase e colocaram um cateter Port-A-Cath para acesso da quimioterapia – fica no ombro direito, embaixo da clavícula e vai até o coração, onde a quimio é jogada. Comecei a quimioterapia em julho, foram 408 horas, com vários ciclos de 5 horas no hospital e depois com a bomba de infusão jogando 3 ml por hora durante 48 horas”, lembra. Fez cinco sessões de radioterapia com um aparelho especial, que atua diretamente no tumor, técnica conhecida como radiocirurgia. “Nessa não tive muita reação, fiquei com uma leve dor, mas nada comparado com a quimio, que foi devastadora”.

Na sequência, em 3 de dezembro, passou por uma cirurgia robótica, que durou 14 horas –  explica que os médicos tiraram a vesícula, o fundo do estômago, o duodeno, parte do jejuno (parte central do intestino delgado, que tem a função de absorver nutrientes), metade do pâncreas e a cadeia linfática. Ele conta que precisou reivindicar na Justiça para que o plano de saúde liberasse a cirurgia robótica, que oferece menos risco e melhores resultados, mas não está prevista pela Agência Nacional de Saúde. “Na técnica de cirurgia convencional, de barriga aberta, o risco de letalidade é de 30% a 40%; por videolaparoscopia é de 10% e na robótica, 1%. A recuperação é bem mais rápida, fica menos tempo internado”, cita, ponderando outras vantagens da técnica mais avançada que, acredita, deveria ser considerada pelos planos de saúde como forma de gastar menos em diárias de UTI, internação, entre outros aspectos. “Esse tumor se espalha pela cadeia linfática; abrindo a barriga é possível tirar uns 4 a 6 linfonodos; por videolaparoscopia, cerca de 10; na minha cirurgia, robótica, foram tirados 21 linfonodos”. Dessa forma, é menor o risco da doença se espalhar, haver recidiva e necessitar de mais tratamentos.

O paciente segue fazendo exames de controle – trimestralmente até completar dois anos, depois semestral e anual – e toma suplemento à base de pancreatina, para a digestão. “Dá um medo danado. Já fiz três exames, estou livre por enquanto. É igual cupim, a gente sempre fica com medo”, diz. “Na consulta da alta o médico me abraçou e parabenizou pela cura. Evito usar essa palavra. Vi uma palestra do Steve Jobs em que ele falava que estava curado e olha no que deu”.

Com seu jeito bem-humorado, revela que aprendeu muito, por exemplo, durante as sessões de quimioterapia. “Quando estamos no elevador para fazer a quimio, alguém vê você com a bombinha de infusão e já pergunta em que ciclo estamos; um conta que está no sexto ciclo, chega outro e comenta que fez o oitavo e ainda nem tem ideia de quando acabará. Quando você diz que seu tumor tem um centímetro e poderá resolver com cirurgia, logo escuta que é uma sorte. O cara quase dá parabéns pelo seu tumor”, sorri, relatando como as realidades do cotidiano com a doença fazem rever valores e prioridades.

 

Riscos, diagnóstico e tratamento

A alta mortalidade do câncer de pâncreas deve-se principalmente ao fato de mais de 50% dos pacientes já o descobrirem com metástase, o que diminui as opções de tratamento e chances de cura. “Uma minoria vai se apresentar com doença localizada ou localmente avançada, quando saiu do pâncreas e foi para os gânglios”, avisa Ricardo Carvalho. “De forma geral a chance de cura do paciente com câncer de pâncreas é de 10%, sendo considerado cura estar vivo em cinco anos. Esse índice aumenta e chega a quase 40% quando o diagnóstico é precoce e cai para virtualmente 0% com metástase ao diagnóstico”.

Esse atraso na descoberta da doença acontece por dois motivos: porque não há exame de rastreamento efetivo e pela localização anatômica do órgão. “Não existe exame, seja de imagem ou de sangue, que possa fazer diagnóstico precoce. Normalmente o tumor é diagnosticado quando o paciente apresenta sintomas, o que acontece em fase avançada. Como a localização do pâncreas é em um ponto sensível, muito próximo do estômago, da aorta e de vasos importantes, mesmo tumores pequenos às vezes são considerados inoperáveis. Muitos ganham a corrente sanguínea e se disseminam para outros órgãos”, ressalta o oncologista.

Os sintomas que podem indicar o tumor são bastante genéricos e também contribuem para a demora do diagnóstico:

  • perda de apetite;
  • perda de peso;
  • dor abdominal (pode ser uma dor na região do estômago);
  • náuseas e vômitos.

“As pessoas sentem dor e deixam para lá, acham que é gastrite ou úlcera, perdem peso e quanto vão diagnosticar está avançado”, avisa Carvalho, complementando que em fases mais avançadas pode haver obstrução da drenagem da bile, causando icterícia, o amarelão, que deixa os olhos amarelos, a urina bem amarelada e as fezes claras.

O diagnóstico é feito com exame de imagem, começando com ultrassom e depois tomografia ou ressonância do abdômen. O oncologista acrescenta que os pacientes deverão ser submetidos a biópsia, que pode ser guiada por tomografia, um exame ambulatorial simples, com anestesia local e incisão de agulha na barriga, ou ecoendoscopia, que é um pouco menos invasiva. A amostra é essencial para saber o estágio da doença e definir o tratamento, se será cirurgia, quimioterapia, radioterapia ou uma combinação desses métodos. “Há vários protocolos. Normalmente, quando o tumor é muito inicial, o tratamento é cirúrgico e depois faz quimioterapia. Para tumor intermediário ou localmente avançado, geralmente é realizado um tratamento – quimio, radio ou ambos – antes da cirurgia. Com metástase a cirurgia deixa de ser opção, tratando apenas com quimioterapia”.

Entre as novidades no tratamento do câncer de pâncreas, ele cita avanço de técnicas cirúrgicas e de radioterapia, novos esquemas de quimioterapia mais efetivos, que aumentam a expectativa de cura dos pacientes. “Há uma tendência, em casos localizados, em algumas situações específicas, de começar algum tratamento antes da cirurgia, quimioterapia com ou sem radioterapia, o que tem trazido bons resultados”. Existem também opções para os 10% dos pacientes que têm mutações no BRCA 1 ou 2, com medicamentos orais.

“São realizados vários estudos para tentar descobrir um exame que consiga ajudar a obter um diagnóstico mais precoce, além de avaliações do papel da imunoterapia e outras moléculas novas, à medida que a Oncologia se aprofunda no campo molecular, para entender melhor a base da doença e identificar um alvo que tenha uma droga que possa ser utilizada”.

Atenção aos fatores de risco, sendo 10% genéticos e 90% fatores externos:

  • cigarro é o principal – quem fuma tem aproximadamente de 20% a 30% maior risco de desenvolver esse tumor;
  • obesidade;
  • sedentarismo;
  • dieta rica em enlatados, embutidos, condimentados e pobre em verduras e fibras;
  • abuso de álcool;
  • pancreatite crônica;
  • idade – pessoas acima de 60 – 65 anos.

 

Grandes mudanças

Gabriela e Erick contam que mudaram bastante a visão de vida após o diagnóstico.

Para Gabriela, as principais transformações aconteceram pela valorização da saúde física e mental. Saiu do emprego e começou um novo desafio em um ambiente, como diz, que permite ter vida além do trabalho. “Essa foi a principal meta que coloquei para mim. Antes eu estava trabalhando muito, quase não tinha tempo para fazer outras coisas. Era uma pessoa muito estressada com o trabalho, passei por períodos de crises de pânico e ansiedade. Essa experiência me fez respirar um pouquinho mais e querer mudar meu jeito afobado e impulsivo. Meu plano de futuro é cuidar da saúde e ter tempo para me divertir”.

Ela já possuía experiências de conviver de perto com o câncer – a melhor amiga faleceu com câncer quando ambas tinham 17 anos e a avó teve tumor no intestino. Por isso, revela, tinha noção de que era complicado, mas acredita que apenas quem vive na pele sabe o que é a rotina de hospital. “Quando disseram que eu poderia não conseguir me alimentar da mesma forma, não voltar a comer alimentos sólidos, me bateu uma tristeza, coisas bobas. No hospital eu pensava que deveria ter comido mais um pedaço do bolo, ter feito coisas que não fiz”.

Com o susto, passou a levar a alimentação mais a sério, praticar atividade física com frequência e estudar sobre alimentação saudável, que considera fundamental, mas revela que se permite comer um docinho de vez em quando e leva a vida com mais leveza. “Comecei a tratar meu corpo com gentileza, que antes eu não tratava. Tinha uma relação complicada, não me sentia confortável com o que eu via. Hoje esses momentos são muito raros e eu sou muito grata, adoro meu corpo, até a minha cicatriz eu adoro. Falo: ‘tenho um corpo, está ótimo assim’”.

Para Erick, a principal preocupação depois do diagnóstico era deixar a esposa sozinha com os filhos – o mais velho estava com 12 anos e o mais novo com 7. “Sempre mantive a cabeça muito boa, encarei tudo com muita fé e pensando: Deus sabe o que faz, vou carregar essa cruz até onde der, é a minha jornada”, afirma. “Sigo a máxima: cada dia, sua agonia. Não ficava pensando no sofrimento do outro dia, se teria quimioterapia, se passaria mal. Se eu passasse mal, ia ver o que fazer”.

Conta que aprendeu a respeitar seu corpo, a deitar e descansar quando sentia ser necessário. Confiava nos médicos e seguia à risca o que indicavam – também decidiu parar de ver o Google, pesquisar, porque só estava fazendo mal. “Uma vez me recomendaram um livro sobre alimentação, fui direto para a parte de câncer de pâncreas e dizia que o tratamento é preventivo; que depois do diagnóstico há muito pouco a fazer porque o paciente morre no período de quatro a seis meses. Você lê esse tipo de coisa e fica uns dois dias mal”.

Depois do tratamento, na retomada às atividades, reduziu o ritmo, parou de trabalhar à noite e deixou de viajar a trabalho. Busca aproveitar ao máximo o tempo com a família. Prefere deixar um pouco de lado os índices que não são animadores e comemora boas descobertas, como um estudo feito com o mesmo suplemento que ele utiliza, uma pesquisa americana com 100 pacientes de câncer de pâncreas vivos há mais de dez anos. “A gente reza ‘Pai nosso, seja feita a Tua vontade’. É a vontade Dele, não a minha. Vou passar o que tiver que passar, aceitar o que Deus mandar e agradecer a prova. Eu já agradecia a Deus todo dia por estar vivo, agora agradeço mais ainda. Quando sento na cama, a primeira coisa que faço é agradecer por mais um dia”.

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