Uma das principais medidas públicas para reduzir a incidência de um tipo de câncer ou promover mais diagnósticos precoces é o rastreamento, que consiste na realização de exames na população sem sintomas. No caso do câncer de colo de útero, uma alternativa mais precisa e eficaz começa a ser adotada gradualmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para substituir a teste citopatológico (Papanicolau): o teste molecular (DNA-HPV), exame primário que já é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para detectar HPV e reduzir os casos desse tipo de tumor e óbitos.
Impactos desse tumor:
- Mata mais de 300 mil mulheres por ano no mundo;
- Uma mulher morre a cada dois minutos devido à doença;
- Neste primeiro ¼ do século XXI, cerca de 130 mil mulheres brasileiras morreram decorrentes do CCU. Mais de 130 mil famílias afetadas e centenas de milhares de órfãos.
Por que esse teste para detectar HPV é importante
“O câncer de colo de útero é um tumor em que a quase totalidade dos casos – mais de 90% – está relacionada à infecção pelo papilomavírus humano, que é o HPV”, explica Fernando Maia, médico sanitarista, doutor em Saúde Coletiva, pós-doutorando em Epidemiologia do Câncer na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e consultor em Saúde Pública, ressaltando que esse tipo de tumor acomete principalmente mulheres mais jovens e tem pico de incidência na quarta década de vida. “Já faz bastante tempo que a literatura internacional começou a buscar entender melhor como se relacionava a infecção pelo HPV ao desenvolvimento desse câncer e conseguiu descobrir que alguns tipos de HPV estão muito relacionados, principalmente os tipos 16 e 18”.
Teste molecular x Papanicolau
“O exame de DNA HPV oferece vantagens significativas em comparação ao tradicional Papanicolau na detecção de lesões pré-cancerígenas e do próprio câncer de colo de útero. É muito mais sensível, capaz de identificar o risco de desenvolvimento do tumor com até 10 anos de antecedência. Essa detecção aprimorada permite um intervalo de rastreamento estendido, passando de três para cinco anos”, afirma Itamar Bento Claro, chefe substituto da Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede (DIDEPRE) do Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Segundo ele, outros benefícios incluem a redução de falsos negativos, a otimização de recursos e a simplificação do acesso com a possibilidade de autocoleta. “Em última análise, este novo teste pode revolucionar a organização do rastreamento, contribuindo significativamente para a eliminação do câncer de colo de útero”, conclui.
Segundo Fernando Maia, a realização de testes para definir se a detecção desse tipo de infecção poderia identificar melhor pacientes com lesões precursoras ou mesmo câncer tem se mostrado bastante positiva com rastreamento baseado em teste molecular. “Ele tem sensibilidade muito maior, descobre muito mais os casos de lesão precursora e câncer, além da facilidade técnica tanto para quem coleta quanto para realizar a análise”.
Enquanto o Papanicolau tradicional envolve uma série de etapas na coleta do material para fixação da lâmina e mais tempo para processar o material, o teste molecular é mais simples. “Pode haver problemas no processamento da amostra e não possibilitar detectar o câncer ou lesão percursora. O teste DNA HPV é mais sensível, consegue detectar casos de infecção, permitindo abordar mais precocemente quando há lesão”.
Jurema Telles de Oliveira Lima, coordenadora do serviço de oncologia de adultos do IMIP – Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira – Recife (PE) e coordenadora do programa Útero é vida, voltado ao diagnóstico e tratamento precoce do câncer de colo do útero, reforça que o teste molecular demonstra maior acurácia/sensibilidade e oportunidade de ação mais precoce. “Também tem uma maior custo-efetividade, permitindo que a grande maioria das mulheres possam repetir o rastreamento a cada 5 anos de forma segura. E quem realmente precisa faz anualmente”. A recomendação atual para o Papanicolau é a partir do segundo teste negativo repetir a cada três anos. “O DNA HPV identifica o risco antes da lesão precursora se desenvolver e tem um algoritmo a partir da identificação de risco primário, que identifica quem realmente não pode deixar de fazer a colposcopia biópsia e tratar a lesão identificada e quem não precisa, também de forma segura”.
Grandes vantagens do teste molecular DNA HPV
- Identificar o risco de desenvolver uma lesão que pode se transformar em câncer quase 10 anos antes de acontecer a doença.
- Ele quase não dá resultados falsos negativos, que é um dos problemas do Papanicolau, porque usa método moderno automatizado.
- Vantagem para sua incorporação nas políticas públicas é a possibilidade de autocoleta, ou seja, a própria mulher coletar o material e levar para análise.
Jurema Telles acrescenta que o teste molecular de HPV é mais eficaz para o rastreamento inicial, pois reduz o risco de perder lesões precursoras. Já a citologia continua útil como exame complementar nos casos da identificação do HPV, sendo necessária numa proporção muito menor e permitindo sua realização com mais qualidade, no meio liquido e a partir do mesmo material que foi coletado para o teste.
“O Papanicolau pode ter alta variação e alta taxa de falsos negativos, devido a erros na coleta e leitura e variabilidade de interpretação; o teste molecular HPV DNA PCR tem uma maior sensibilidade, maior custo-efetividade em programas organizados, reduzindo a necessidade de exames frequentes”, avalia. “O tempo médio entre a infecção e o desenvolvimento do câncer é de 10 e 15 anos, quando se pode realizar o rastreamento de mulheres assintomáticas entre 25-64 anos e cuidar das lesões ou tumores identificados de forma mais simples e eficiente”.
Resultados do Estudo Piloto realizado no Brasil, em Pernambuco
A coordenadora do programa Útero é vida traz detalhes sobre um estudo realizado em Pernambuco que descreveu brevemente a fase inicial de implementação do projeto piloto nacional de mudança para um rastreamento organizado usando como triagem o teste PCR DNA para detecção do HPV oncogênico, demostrando resultados iniciais promissores, mesmo em regiões de alta vulnerabilidade em Pernambuco, quanto a viabilidade, aceitabilidade, qualidade do método.
“Mesmo num processo de mudança, novo método, em um território de alta vulnerabilidade foi possível realizar a testagem inicial em mais de 21 mil mulheres que nunca fizeram o teste ou estavam a mais três anos sem fazer, a grande maioria dentro da faixa etária, atendendo o chamado (princípios rastreamento organizado)”, afirma.
OMS recomenda o teste DNA HPV para rastreamento
Fernando Maia relembra que esse tipo de teste já é recomendado pela OMS desde 2020. “Há uma forte recomendação para rastreamento, tem a vantagem para a unidade de saúde – se a mulher realiza a cada cinco anos, diminui a quantidade de exames que precisa ser coletado”.
Seu uso já é consolidado em países como Austrália, ajudando a promover a queda no número de diagnósticos e diagnosticando precocemente. “Vemos publicações no Reino Unido e Escócia mostrando diminuição dos casos. Países como Austrália estão bem próximos de atingir a meta da OMS para eliminação do câncer de colo de útero enquanto problema de saúde pública, que é a incidência desse tumor abaixo de 4 casos por 100 mil mulheres”, diz o médico sanitarista. “No Brasil temos um longo caminho pela frente, mas acreditamos que é possível atingir a meta se conseguirmos estruturar agora os três eixos definidos pela organização”.
Projeções matemáticas da OMS indicam que, se esses objetivos forem atingidos, os impactos serão significativos:
- Redução de 42% na incidência do CCU até 2045 e 97% até 2120.
- Prevenção de mais de 74 milhões de novos casos de CCU
- Redução cumulativa de mortes: 300.000 até 2030, mais de 14 milhões até 2070 e mais de 62 milhões até 2120.
- Impacto maior nos países de baixa e média renda, que concentram mais 2/3 dos casos e mais de 90% das mortes, como o Brasil.
Rastreamento organizado é peça chave no processo
Uma coisa fundamental quando se trata de custo efetividade, alerta Fernando Maia, é implementar não apenas a mudança do teste Papanicolau para o molecular, mas também um rastreamento organizado.
“O rastreamento que fazemos hoje no país com os exames de mulheres assintomáticas é um pouco o que conceituamos como oportunístico: quando a mulher vai a uma unidade de saúde por outro motivo, é ofertado o exame, que é realizado e ela entra nas condutas posteriores”, esclarece. “No rastreamento organizado temos uma lista de pacientes com mulheres elegíveis na faixa etária de 25 a 64 anos, realizamos estratégias para convocar essas mulheres a fazerem o exame e acompanhamos todo a jornada até o pós, seja para definir a periodicidade menor para repetir o teste ou se será necessário fazer exames complementares e encaminhar a paciente para outro nível de atenção”.
Para Fernando Maia, esse talvez seja o grande desafio do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e municipais para os próximos anos.
Próximos passos para o Brasil buscar atingir a meta da OMS
- Desenvolver a consciência de que é preciso agir nos três pilares da eliminação simultaneamente: vacina contra HPV, rastreamento e cuidado, garantindo acesso das três ações, priorizando grupos de maior vulnerabilidade.
- Garantir que não é só a mudança do teste e sim implementação de um teste de triagem melhor, mais sensível e que vai identificar o risco de desenvolver lesões pré-cancerígenas ou invasivas iniciais dentro de rastreamento organizado.
- Identificada a condição de maior risco (HPV positivo) será garantida maior proteção, acompanhamento, acesso e realização exames/tratamentos complementares (colposcopia /biópsia) – tratamento certo das lesões no tempo certo.
- Promover ações em todo país, especialmente nas regiões ondem vive a população mais vulnerável e nas mulheres de maior risco: que nunca fizeram o teste, não faziam com regularidade/qualidade, minorias étnicas – indígenas, negras, pardas, mulheres com baixas condições educacionais ou socioeconômicas, vivendo com HIV e imunossuprimidas.
- Trabalhar a cultura da prevenção, com muita informação, comunicação e engajamento, combatendo fake News.
Os benefícios desse plano: salvar a vida de milhares de mulheres anualmente, de forma mais eficiente e barata.
Eliminar um câncer que causa tantas mortes e sofrimento vai melhorar a capacidade do sistema também de cuidar dos outros cânceres, que ainda não podem ser prevenidos e que vão dobrar no Brasil nos próximos 20 anos devido ao envelhecimento populacional.
Contribuições para políticas públicas
A Aliança pela Eliminação do Câncer de Colo de Útero, representada pelo Instituto Vencer o Câncer e Grupo Mulheres do Brasil, tem participado da construção do Plano Nacional de Eliminação do Câncer do Colo do Útero.
Em 5 de dezembro de 2024, estivemos no II SIMPÓSIO, ELIMINAÇÃO DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO NO BRASIL: MEDINDO O PROGRESSO, realizado pelo INCA – Instituto Nacional de Câncer, no Rio de Janeiro, onde foram discutidos os três pilares Plano Nacional de Eliminação do Câncer do Colo do Útero: vacina, rastreio e tratamento.
No mesmo mês, o IVOC enviou contribuições para a Consulta Pública nº 75/2024, realizada pela Conitec/SECTICS para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero: Parte I – Rastreamento organizado utilizando testes moleculares para detecção de DNA-HPV oncogênico. Nessa oportunidade, nosso parecer foi acatado.
Texto por Viviane Pereira
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.