“Nunca ninguém tratou das suas dores?”. Juliana Brandão do Nascimento respondeu que não para a quinta oncologista que buscava para tentar aliviar as dores que vieram com a recidiva de um câncer. A anterior havia dito que não tinha jeito, que ela ia viver com aquelas dores terríveis mesmo. “Eu estava igual a uma velha, não conseguia fazer as coisas, era difícil levantar, engordei muito porque não conseguia praticar atividade física”.
A jornada da Juliana começou com o diagnóstico de câncer de mama em 2014, aos 36 anos. Ela passou por cirurgia, quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia. Entrou em recidiva e, em 2022, descobriu que a doença havia voltado – e voltou trazendo muita dor.
“Eu sentia dor no quadril, na costela, na região do estômago. Fiz exame, fiz ressonância, raio-x. Ninguém achava nada”. Foram dois meses procurando até que uma reumatologista pediu a cintilografia óssea que descobriu o foco de câncer na bacia, no esterno, no mediastino e na costela, que sofreu fratura espontânea em decorrência da doença. A biópsia confirmou que era metástase do câncer de mama.
“Viver com dor não é normal”
Juliana conheceu a Casa do Cuidar, em São Paulo, levada por uma amiga. Chegou sem saber exatamente para onde ia. Saiu com um novo olhar sobre o próprio corpo — e sobre o que é cuidado de verdade.
“Lá, eu conheci uma galera, e todo mundo dizendo: ‘viver com dor não é normal’. E eu pensei: não é mesmo. Foi ali que começou tudo.” Decidiu procurar outra oncologista, indicada por uma amiga, que lhe falou: “‘Você não tem que sentir dor. Está tudo errado. Nunca ninguém te encaminhou para um paliativista?’ E eu falei: ‘Não’. Foi a primeira vez que alguém tratou das minhas dores”.
Naquele momento, sua vida virou uma nova página. Entrou em cuidados paliativos em julho de 2024. “A médica fez tudo num pacote: dor, libido, mal-estar. Me prescreveu canabidiol, duloxetina. Eu virei outra pessoa”.
Ela conta que antes estava repensando se valia a pena continuar com o tratamento, já que os efeitos estavam lhe afetando tanto. Descobriu que poderia continuar seu tratamento para o câncer e manter sua qualidade de vida. O que precisava era um protocolo para dor: isso é cuidado paliativo.
Cuidado paliativo não é morte – é vida
Em menos de um ano em cuidados paliativos, Juliana voltou à rotina. Voltou a pintar. A treinar. A viver. “A maior parte do tempo eu nem penso que tenho câncer. Eu lembro quando vou ao médico, quando tomo o remédio. Mas no dia a dia, não. Eu sou a Juliana. O câncer não diz quem eu sou. Não determina nada na minha vida”, diz. “O câncer só determina que no dia da medicação eu tenho que estar aqui. Fora isso, sou eu que mando”.
Juliana faz questão de repetir: cuidado paliativo não é fim de linha. Não é desistência. É investimento em vida. E vida com qualidade.
“Tem gente que fala: ‘coitada da Juliana, está em paliativo’. E eu digo: ainda bem! Ainda bem que eu estou em cuidados paliativos. Porque agora eu tenho tratamento para os sintomas, para os efeitos colaterais, para os desconfortos”.
Segue com o tratamento, que promove melhoras: a metástase dos ossos sumiu, a do mediastino continua, mas diminui 3 milímetros a cada vez que realiza exame. A esperança é que um dia chegue a zero, mas ela não se preocupa com isso. “Minha preocupação maior é viver, com qualidade de vida”.
Hoje, vai à academia todos os dias. Ela e o marido avançam no projeto de viajar pelo Brasil de motorhome. Faz planos. Faz arte. Ri. Vive. Com leveza e autonomia.
Quando o cuidado começa antes da urgência
Durante muito tempo, os cuidados paliativos foram mal compreendidos — vistos como algo que se inicia apenas quando não há mais esperança. Mas essa ideia vem mudando, como explica Daniela Aceti, psicóloga e diretora de comunicação da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP): “Os cuidados paliativos promovem qualidade de vida, alívio do sofrimento e apoio emocional ao longo de um processo de adoecimento e tratamento – importante ressaltar que desde o início de um tratamento as pessoas se beneficiam desta abordagem”.
É um caminho para ajudar pacientes com doenças graves a viverem com dignidade, com controle dos sintomas que geram sofrimento, não apenas físicos, mas também sociais, psicológicos e espirituais.
Informação também é cuidado
A diretora da ANCP reforça que ainda há bastante desconhecimento — inclusive entre profissionais da saúde, mas que essa realidade está mudando, mesmo que lentamente.
“Campanhas, depoimentos e a inclusão do tema na mídia têm ajudado, mas ainda há muito desconhecimento. Há um grande desafio de desconstruir uma má interpretação de que os cuidados paliativos são indicados para cuidados de fim de vida e associados a “não ter o que fazer”. Isto é um grande desafio entre a população leiga e com profissionais que ainda tem carência em suas formações em relação ao tema”.
Ela acredita que a conscientização de oncologistas e profissionais do câncer ocorre por meio de capacitações, eventos científicos e diretrizes das sociedades médicas. “O diálogo interdisciplinar também é essencial para integrar os cuidados paliativos no tratamento desde cedo”.
Daniela Aceti chama atenção para alguns mitos e verdades que envolvem o tema:
MITOS | VERDADES |
“Só servem para quem está morrendo” | É uma abordagem que alivia sintomas em qualquer fase da doença |
“Significa desistir do paciente” | São parte de todo tratamento global, inclusive junto com terapias curativas |
“É um tratamento para quem não tem mais cura” | “É uma abordagem a mais que o paciente deve receber para controlar sintomas e sofrimentos ao longo do tratamento |
Fundada em 2005, a ANCP tem como objetivo congregar profissionais com interesse no desenvolvimento, ensino e implementação dos Cuidados Paliativos no Brasil. A diretora de comunicação explica que sua atuação abrange a representação dos profissionais que trabalham em Cuidados Paliativos, promovendo ações de fomento e desenvolvimento de educação, pesquisa e atividades profissionais.
A associação também busca parcerias com instituições, públicas e privadas, governamentais nacionais e internacionais, entidades de classe e associações de apoio a pacientes e familiares. “Queremos estimular a implementação de serviços de cuidados paliativos no Brasil, que comprovadamente aumentam a qualidade de vida dos pacientes e promovem melhor gestão nas instituições de saúde”, avalia Daniela, ponderando que os cuidados paliativos vão se tornar ainda mais personalizados, incorporando tecnologias que melhoram o conforto e a comunicação entre equipe, paciente e família.
Ela lista, ainda, os preconceitos e desafios que envolvem o tema:
Principais preconceitos
- Associar cuidados paliativos apenas ao fim da vida;
- Acreditar que é “desistir” da pessoa;
- Pensar que são exclusivos para pacientes com câncer.
Principais desafios para quebrar esses preconceitos
- Informar desde o diagnóstico, não apenas na fase final de vida;
- Qualificar profissionais para abordar o tema com sensibilidade;
- Desmistificar o conceito com materiais educativos;
- Favorecer que mais pessoas tenham acesso a abordagem, desconstruindo pela vivência. Isto pode ser mais viabilizado a partir de implementação da Política Nacional de Cuidados Paliativos aprovada em 2024 no SUS, mas que na prática ainda encontra desafios para ser executada.
Alívio que permite olhar adiante e planejar o futuro
Enquanto isso, histórias como a de Juliana mostram, na prática, o que os dados já apontam: cuidados paliativos melhoram a qualidade de vida, aumentam a adesão ao tratamento e devolvem autonomia ao paciente. Comprovam que cuidar é muito mais do que tratar a doença. É ouvir, aliviar, respeitar. E permitir que o paciente seja protagonista da própria vida.
“Hoje eu consigo ver adiante. Cuidados paliativos me deram isso: perspectiva. E eu quero viver bem”, afirma Juliana, que compartilha sua jornada e inspira outras pacientes em seu perfil do Instagram @ sobre_viver.bem. “É sobre viver bem, sem ficar com a neura pensando todo tempo se a doença vai progredir. Vejo muitas meninas em pânico, com raiva da doença. Procuro mostrar que não vale o tempo e a energia que a gente gasta pensando assim. Que o melhor é usar a energia para o que pode resolver, fazer a sua parte”.
Por Vivi Griffon
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.