Viviane Pereira
As discrepâncias nos números que criam uma disparidade social quando o assunto é câncer de mama assustam e preocupam – principalmente porque podem representar a diferença entre uma vida com qualidade e aumento das taxas de mortalidade. As mulheres brancas apresentaram uma situação mais positiva em comparação com as mulheres pardas e pretas na análise de dados de estadiamento ao diagnóstico dos Registros Hospitalares de Câncer (RHC) do Instituto Nacional do Câncer (INCA).
Esse é um dos resultados apresentados pelo Panorama da atenção ao câncer de mama no Sistema Único de Saúde, elaborado pelo Observatório de Oncologia em parceria com o Instituto Natura. O levantamento considera os registros com informação preenchida na base de dados do RHC, entre 2015 e 2022.
“A desigualdade de acesso chama atenção, principalmente porque sabemos que em algumas regiões do país a população é formada majoritariamente por negros e pardos”, informa Nina Melo, coordenadora do Observatório de Oncologia, deixando no ar uma pergunta inquietante: “Onde estão essas pessoas que não chegam até os serviços de saúde?”.
O questionamento tem razão de ser, já que as desigualdades acompanham toda a jornada da paciente, desde o rastreamento até o tratamento. O percentual de mulheres pardas e pretas diagnosticadas em estágios mais avançados (estágios 3 e 4), por exemplo, é maior do que o de mulheres brancas.
Esse é um ponto crucial quando se trata de câncer de mama, especialmente porque uma das principais medidas de controle da morbimortalidade é o diagnóstico precoce (nos estágios 0, 1 e 2). O diagnóstico em estágio inicial aumenta as chances de cura. “O câncer de mama tem boas chances de cura se for diagnosticado precocemente”, afirma Nina Melo. “Se as mulheres não rastreiam, não chegam no tratamento. Em muitos casos, quando têm o diagnóstico, ou o câncer já está muito avançado ou elas nem são diagnosticadas. A paciente vai a óbito sem nem saber o que tinha”.
Muita coisa pode ser evitada
Esse é o principal recado que a coordenadora do Observatório de Oncologia gostaria de deixar para esse Outubro Rosa, utilizando os dados como referência: muitas consequências podem ser evitadas com maior acesso aos exames de rastreio, diagnósticos precoces e início de tratamento mais rápidos – essas ações evitariam o que Nina chama de efeito dominó – problemas que começam no rastreamento e seguem no acesso ao diagnóstico, ao tratamento e mortalidade.
“Sabemos que além das dificuldades de acesso aos serviços, há uma resistência muito forte, um medo que paralisa e impede que mais mulheres façam seus exames regularmente”, diz, citando a faixa etária alvo do Ministério da Saúde para realização de mamografia, de 50 a 69 anos. “As taxas de cobertura estão baixíssimas no Brasil – em torno de 23% do público-alvo faz a mamografia, enquanto o recomendado pela Organização Mundial da Saúde é de pelo menos 70% dessa população para ter impacto na mortalidade. É uma diferença muito grande”.
Comentando sobre as dificuldades para melhorar esses números, ela cita o contexto histórico social do país, em que grande parte das mulheres pretas estão em classes sociais mais baixas e acabam sendo chefes de família – muitas não conseguem fazer seus exames com a periodicidade correta porque precisam trabalhar, não têm com quem deixar a família, os filhos. “Em muitos casos as pessoas precisam se deslocar para outros municípios para poder fazer uma simples mamografia, que dirá o tratamento. Acredito que múltiplos fatores levam a essa disparidade racial”.
Sete meses é tempo demais!
O levantamento aponta que a demora entre a mulher suspeitar que tem algo errado e efetivamente começar o tratamento pode levar mais de sete meses. Na primeira fase dessa jornada, a média de tempo em dias entre a consulta com o especialista e o diagnóstico foi de 36 dias – ou seja, quase uma semana a mais do que prevê a Lei 13.896/19, que seriam 30 dias.
Com o diagnóstico na mão, o tratamento deveria começar em 60 dias – esse é o tempo máximo determinado por lei. No entanto, o documento mostra que está demorando 179 dias. “As chances de cura caem drasticamente”, lamenta Nina. “Impacta muito na qualidade de vida, a mulher tem mais chance de vir a óbito e pode ficar mutilada. Além disso, o tratamento é mais caro para o sistema, há aumento da mortalidade em faixas etárias precoces, são anos de vida perdidos em que as mulheres deixam de contribuir para a sociedade. Ou seja, é ruim para todo mundo”.
Tudo começa na atenção básica
A coordenadora do Observatório de Oncologia acredita que a mudança desse cenário começa na atenção básica de saúde, fortalecendo a prevenção, a promoção de saúde e o rastreamento. “Com a nova política de controle e prevenção do câncer, que agora virou lei, a tendência é melhorar. Mas é preciso trabalhar, monitorar, melhorar o sistema com a implementação do programa de navegação de pacientes com câncer de mama”.
Apesar das estratégias pensadas, leis delimitando prazos, o país ainda não está tendo os resultados esperados em relação à doença. “Nosso objetivo não é alarmar ninguém, mas sim levar informação para que os gestores de saúde vejam o cenário de suas cidades, regiões, entendam o que acontece e possam agir, chamar as mulheres para realizar exames, fazer mutirões, organizar essa rede”.
Ela também espera que a informação incentive as mulheres a buscarem seu autocuidado e seguir o tratamento como é preciso, mesmo com as dificuldades, sabendo que precisarão resistir, insistir e persistir.
- “Quando estamos conscientes do que precisamos, sabemos dos nossos direitos, temos mais condições de cobrar. A pessoa com informação é muito mais empoderada. Mostrar essas informações é como apontar caminhos”.
Nina Melo, coordenadora do Observatório de Oncologia
Panorama da atenção ao câncer de mama no Sistema Único de Saúde
Destaques
Brancas | Pardas | Pretas | |
Diagnóstico em estádios 3 ou 4 | 35,5% | 44,2% | 46,5% |
Diagnóstico precoce – comparativo anos 2015 e 2021 | 65,2% -59,7% | 54,8% – 58% | 54,8% – 52,6% |
Tempo médio entre consulta com médico especialista e diagnóstico | 37 dias | 42 dias | 42 dias |
Diagnosticadas em até 30 dias | 65,5% | 58,9% | 61,1% |
Início do tratamento após 60 dias do diagnóstico | 60,8% | 59,7% | 65,5% |
Média de dias do diagnóstico até o início do tratamento | 201 dias | 167 dias | 169 dias |
Entre as mulheres atendidas e em tratamento com quimioterapia, considerando os dados válidos (12,9% dados foram ignorados em relação à raça/cor) | 58% | 33,7% | 5,7% |
Radioterapia | 55,1% | 36,3% | 5,9% |
Tratamento hospitalar | 49% | 42,6% | 7,1% |
Fonte: dados de estadiamento ao diagnóstico dos Registros Hospitalares de Câncer (RHC) do Instituto Nacional do Câncer (INCA) de 2015 a 2021. Levantamento realizado pelo Observatório de Oncologia em parceria com o Instituto Natura
Veja o levantamento completo aqui
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.