Estresse, ansiedade, momentos de insegurança e tantas outras emoções vivenciadas durante a pandemia potencializaram um problema que já era alarmante, fator de risco para diversas doenças: o tabagismo. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aponta que 34% dos mais de 20 milhões de fumantes do Brasil aumentaram o consumo de cigarro no período. Ou seja, mais de um terço das pessoas que já fumavam passaram a fumar uma quantidade ainda maior. O estudo constatou que esse crescimento está relacionado a quadros de insônia e depressão. O aumento foi maior entre pessoas que relataram ter sentido piora no sono (nesse grupo o tabagismo cresceu 45,5%), mais tristeza (46,3%) e nervosismo (43,3%).
Nos Estados Unidos, o Cigarrete Report, da Federal Trade Commission, registrou em 2020 aumento nas vendas anuais de cigarro pela primeira vez em duas décadas. As maiores empresas do produto venderam 203,7 bilhões de unidades contra 202,9 bilhões de unidades no ano de 2019.
Aliado ao aumento de consumo, houve ainda outro índice preocupante: durante a pandemia caiu de 97 para 36 a quantidade de municípios oferecendo tratamentos para cessação de tabagismo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), comparando período de maio a agosto de 2019 com maio a agosto de 2020. O artigo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) publicado em periódico da Fiocruz também demonstrou que houve redução de quase 80% na busca desse tipo de tratamento no Estado.
Esses números indicam o agravamento de uma situação já bastante difícil, com o tabaco matando mais de oito milhões de pessoas por ano no mundo, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Deste total, mais um milhão são fumantes passivos.
Com dados que envolvem tantas pessoas e causam doenças e mortes, o tabagismo é considerado a maior causa evitável isolada de adoecimentos e mortes precoces no mundo. Entre essas doenças provocadas pelo consumo de tabaco, uma das que mais chama atenção é o câncer de pulmão. E este é o mês dedicado a conscientizar sobre o tema, com a campanha Agosto Branco, e alertar que 85% dos casos de câncer de pulmão estão relacionados ao uso de tabaco, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA).
Mais cigarro, mais tempo, maior risco
Se aumento no consumo de cigarro identificado durante a pandemia não for revertido, pode resultar, a longo prazo, em mais casos de tumores de pulmão. “Existe uma relação direta tanto do número de cigarros que a pessoa fuma quanto do tempo como tabagista ao longo da vida com o risco de câncer de pulmão. Então, se as pessoas aumentam o hábito de tabagismo, seja na quantidade de cigarros ou porque estavam se preparando para parar de fumar e decidiram não deixar porque veio a pandemia, independentemente do motivo, qualquer coisa que impacte no tempo de tabagismo ou no número de cigarro provavelmente terá impacto em aumento de incidência de câncer de pulmão, e isso leva anos, não será de imediato”, alerta o oncologista William William, diretor de Oncologia e Hematologia da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer. Ele alerta ainda que qualquer fator que aumente a exposição ao tabagismo será prejudicial não apenas para câncer de pulmão, mas para outras doenças como enfisema, bronquite crônica, pressão alta, AVC, derrame, entre outras.
Por outro lado…
Se de um lado a pandemia pode ter sido prejudicial para a incidência de câncer de pulmão, com consequências que serão observadas no futuro, por outro houve um fenômeno que ajudou a aumentar o número de diagnósticos precoces, com a maior quantidade de tomografias pulmonares realizadas.
Dr. William William chama atenção ao fato de apesar de as pessoas terem diminuído a atenção médica tanto para exames preventivos quanto na busca de solução para sintomas, por medo de ir ao hospital e expor-se ao Covid-19, muitas com suspeita de ter contraído o vírus realizaram mais tomografias de pulmão, e em alguns casos acabavam descobrindo o tumor. “Ocorreram casos de pessoas que foram fazer tomografia com suspeita de Covid e descobriram o tumor em estágio mais inicial. Com isso vimos um aumento no número de diagnósticos precoces de câncer de pulmão, o que não é comum”, avalia.
O oncologista ressalta que se os fumantes fizessem tomografia de screening, o número de pacientes diagnosticados precocemente poderia ser mais frequente. “Sabemos que esse rastreamento não é estruturado, não ocorre no Brasil e acontece pouco pelo mundo. Mesmo nos países onde existe programa de rastreamento bem estabelecido, uma minoria de fumantes realiza os exames, diferentemente da mamografia, por exemplo, que um número muito grande de mulheres faz”, diz. “Em câncer de pulmão muitos nem sabem que é preciso fazer tomografia em quem tem história de tabagismo”.
Pode ser genética também
O triatleta Renato Astur, 60 anos, nunca fumou e sempre teve uma limentação equilibrada. Por isso foi uma grande surpresa quando recebeu o diagnóstico de câncer de pulmão em agosto de 2019. Também por esse motivo levou quase seis meses desde o início de uma tosse seca até descobrir a doença. “Todo médico que eu ia perguntava se eu fumava. Como nunca fumei, descartavam logo essa hipótese”, recorda. “Sempre fui esportista, então não tinha problema de falta de ar, não perdi peso, não tinha dor e nenhum outro sintoma característico”.
O paciente passou por otorrinolaringologista, pneumologista e fez vários exames, até mesmo endoscopia, porque os médicos acreditavam que era refluxo. “A pneumologista me disse que tinha três hipóteses para mim: refluxo, refluxo e refluxo. Fiz tratamento de refluxo por três meses, comprei pés para aumentar a cabeceira da cama”.
Depois de meses e constatado que não era refluxo, o resultado do exame de tomografia trouxe o alerta quando a secretária da pneumologista avisou que ela queria vê-lo no mesmo dia. “Assim que entrei, a médica virou o computador para mim e mostrou a tela. Estava tudo branco, dos dois lados do meu pulmão”. Ela disse: ‘É provável que seja tumor’”.
O cirurgião torácico, para quem foi encaminhado, avisou que o problema dele não era mais cirúrgico, mas clínico – estava em estágio 4 e havia metástase, pequena, na coluna.
Renato Astur descobriu que tem mutação no Exon 20 no gene EGFR, passou por vários tratamentos nos últimos três anos, começando com terapia-alvo indicada para mutação Exon 19, porque ainda não havia medicamento direcionado ao seu tipo. Conta que funcionou por sete meses, fez mais sete meses de quimioterapia, depois imunoterapia com quimioterapia e terapia antiangiogênica.
Agora comemora poder tomar um medicamento que é especificamente para o seu tipo de mutação. “É o primeiro remédio para Exon 20 no mundo. Foi aprovado em abril pelo FDA e em outubro pela Anvisa. Como ainda não tem preço no Brasil, estou tomando como acesso expandido”, comemora. “Nesses três anos vivi em uma montanha-russa, o tumor cresce um pouquinho, diminui um pouco… Hoje estou melhor do que quando tive o diagnóstico”. Ele relata que os efeitos colaterais são bem menores do que os da quimioterapia e tem esperanças de que os efeitos benéficos durem mais tempo.
Boas novidades
O medicamento que renova as esperanças de Renato Astur é um dos exemplos dos novos tratamentos para câncer de pulmão descobertos nos últimos anos. “Temos muita novidade, especialmente no que se refere à imunoterapia e em terapia-alvo, que atua em moléculas específicas do câncer que estão desreguladas e funcionam como um motor do tumor; conseguimos bloquear essas moléculas alteradas, o que traz impacto para a doença do paciente”, cita Dr. William William sobre duas evoluções importantes das últimas décadas.
O oncologista explica que as inovações foram aplicadas primeiramente para pacientes com doença muito avançada que já haviam passado por diversos tratamentos e, aos poucos, passaram a ser usados também na doença em estágio inicial. “Hoje algumas dessas medicações estão disponíveis inclusive para prevenir recaída do câncer após cirurgia. Felizmente esse tumor tem tido muitas novidades ano após ano. Ter câncer de pulmão não é mais uma sentença de morte. O tratamento se tornou bastante complexo, com opções modernas em cirurgia, radioterapia, medicamentos, e também combinando quimioterapia, imunoterapia e terapia-alvo. Por isso, é importante, sempre que possível, o paciente ser avaliado e tratado num ambiente multidisciplinar, para ter vários ângulos e oferecer a melhor combinação de tratamento para cada paciente”.
Sempre é bom lembrar
Um aspecto que o Dr. William William faz questão de ressaltar é que, em muitos casos, este tipo de tumor pode ser evitado se as pessoas pararem de fumar ou reduzirem o consumo de tabaco. E lembra: nunca é tarde para parar de fumar. Também reforça a indicação do rastreamento com tomografia de baixa dose especialmente para quem tem mais de 50 anos e fumou uma grande quantidade por um longo período.
Um alerta a partir da própria experiência
“Eu não fumo!”. A indignação de Renato Astur diante do atraso do seu diagnóstico porque os médicos descartavam a hipótese de câncer de pulmão quando ele respondia que não fumava transformou-se em um livro que serve de alerta para pacientes e profissionais de saúde.
“Escrevi o livro ‘Eu não fumo’ para divulgar que não precisa fumar para ter câncer de pulmão e que a doença hoje tem tratamento”, afirma. “Meu problema é genético, nunca tive contato com cigarro”.
Seu objetivo com a obra é alertar principalmente os médicos para que não dêem o diagnóstico errado nem atrasem a descoberta do tumor, como aconteceu com ele. “Quando o câncer de pulmão é descoberto no início é possível fazer cirurgia e a chance de estar curado é grande. Se demora, a doença vai proliferando”. Sua missão é divulgar o livro o máximo possível – quem se interessar pode saber mais no site www.renatoastur.com.br – toda a renda obtida com a venda do livro é revertida para o Grupo de Apoio ao Adolescente e Criança com Câncer (GRAACC).
O paciente também leva sua mensagem no seu estilo de vida. Apesar de não fazer mais esporte intenso, continua praticando atividade física, caminhando dois quilômetros todas as manhãs, pois sabe que sua condição foi fundamental para ter melhor resultado no tratamento, inclusive sem muitos efeitos colaterais com a quimioterapia, conseguindo completar os seis ciclos. E também que ajuda a evitar recidiva.
Faz ainda questão de reforçar a importância de buscar boa informação para saber as melhores opções de tratamento. “Tem que ir atrás, não pode ser passivo nesse tipo de problema. Pegar o máximo de informação é o que faz você sobreviver. Quanto mais pesquisa, mais chance de descobrir alguma novidade que vai ajudar”.
Conta que uma das mudanças que teve com a doença foi ficar um pouco mais sensível emocionalmente. “Minha família é de Minas Gerais, minha mãe e meu pai sempre foram um pouco distantes e com meu filho eu sou mais ou menos assim, mas estou me aproximando um pouco mais, com um pouco de carinho”.
Para quem se vê diante de um diagnóstico, Renato aconselha nunca desistir nem desanimar. “Não pode perder a esperança. O dia de hoje é diferente do de ontem. Ontem não tinha cura para um problema que hoje existe”. E recorda a felicidade em poder utilizar agora um tratamento especialmente direcionado para a sua situação. “Normalmente você começa a tomar o remédio, o tumor reduz e depois de uns sete meses começa a voltar. A informação que vemos é que esse medicamento tem a média de sete a oito meses de efeito, mas eu faço parte de um grupo de pacientes do mundo todo e tem gente que ficou um ano e meio com ele. Se eu conseguir ficar todo esse tempo, está ótimo”.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.