“A força da mulher vem de tantas funções que ela tem hoje em dia – e não são poucas. Sou responsável por muita coisa. Não vou deixar tudo isso para ficar triste e perder o que eu já conquistei. Orando e com fé eu me levantei”. Esse é o relato da Juliana Soares Cassorielo, 38 anos, que enfrentou a descoberta de um câncer em estágio avançado e o fim de um noivado. Para seguir, buscou forças no que mais ama: seu filho e sua carreira.
Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, 8 de março, o Instituto Vencer o Câncer (IVOC) traz uma visão da abordagem feminina em relação à doença para tratar de peculiaridades que atingem principalmente as mulheres que se vêem diante de um diagnóstico e precisam equilibrar os cuidados que têm com a casa, os filhos, a família e a profissão, sem deixar de cuidar de si mesmas.
Juliana é médica dermatologista e preferiu não parar de trabalhar durante o tratamento – reduziu o ritmo e adaptou seus horários às sessões de quimioterapia. Acredita que essa decisão foi essencial para ajudar a passar pelos momentos mais difíceis. “Me manter ativa ajudou na mentalização positiva. Em muitos momentos, mesmo fazendo quimioterapia, eu esquecia que estou doente”.
“Muitas mulheres deixam de trabalhar quando têm diagnóstico de câncer de mama. Cerca de um terço só volta a trabalhar ao final de um ano e 60% ao final de dois anos após o diagnóstico”, avisa a oncologista Debora Gagliato, membro do Comitê Científico do IVOC e uma das autoras da pesquisa Retorno ao trabalho após diagnóstico de câncer de mama: um estudo prospectivo observacional no Brasil, publicada em 2018, realizada com 125 funcionárias de uma empresa.
A dificuldade de retomar o trabalho deve-se principalmente, segundo a oncologista, à falta de adequação, por parte do empregador, às novas demandas. “Muitas vezes a demanda e o número de horas continuam os mesmos de antes do diagnóstico e a mulher está mais vulnerável, cansada, precisando de cuidados especiais”, diz. “Cada vez mais mulheres relativamente jovens são diagnosticadas com câncer de mama, tendo que lidar com trabalho, cuidar da família e manter a casa. O tratamento oncológico tem efeito na disposição, provoca fadiga e riscos de infecção. Continuar trabalhando e contribuindo para a casa é um desafio. É ainda mais difícil quando a paciente passa por cirurgias mais complexas”.
Débora explica que o objetivo de realizar a pesquisa foi caracterizar como eram os padrões de retorno ao trabalho. “Sabemos que cada vez mais é importante discutir esse tema. As mulheres jovens estão no auge da produção de trabalho e precisam dessas adequações”.
Uma particularidade constatada pela oncologista na experiência clínica é que em muitos casos a paciente tem amparo durante a fase de quimioterapia, mas quando o tratamento envolve hormonioterapia nem sempre esse suporte existe. Ela destaca que a hormonioterapia também é desafiadora, demanda cuidados e muita atenção. “Temos que lembrar de todas as fases que a mulher passa, com fadiga e sintomas de menopausa às vezes numa paciente de 30 anos, é muito difícil”.
Para ela, a sociedade deve encarar esse problema e se adequar às demandas, lembrando que atualmente o tratamento quimioterápico conta com medicamentos de suporte que ajudam a evitar os efeitos colaterais, com remédios para diminuir o vômito e a náusea e manter mais alta a defesa do organismo, evitando infecções. “Sabemos que as mulheres têm capacidade para se manter no mercado de trabalho normalmente. A chave crucial é o empregador ter essa consciência de que ela pode continuar é bom para ficar com sua cabeça boa, além do benefício de contribuir com o orçamento da família. Mas precisa passar por adequações, flexibilizar a jornada de trabalho no dia da quimioterapia e no seguinte, por exemplo; não é possível exigir o que ela fazia antes de começar o tratamento”, opina. “Notamos que quando há flexibilidade das empresas as mulheres se mantêm mais no trabalho, o que reflete numa melhora. As pacientes que conseguem continuar trabalhando encaram melhor psicologicamente a doença, pensam menos nos riscos e complicações que podem acontecer. Ajuda também a parte cognitiva: os tratamentos oncológicos são associados a mais esquecimento e lentidão do pensamento. Quando a mulher fica ativa, exercita a cognição e diminuem as alterações que o tratamento pode provocar”.
Os sintomas de depressão em pacientes, cada vez mais prevalentes, também afetam a capacidade de retornar à vida profissional. Infelizmente, lamenta Debora, seriam justamente as mulheres que mais se beneficiariam de estar inseridas no mercado as que menos conseguem promover o retorno. “Temos obrigação de tratar essa parte psicológica. Quando a paciente tem sintomas de depressão precisa começar com medicamento antidepressivo, fazer terapia, porque vai impactar a questão produtiva”, esclarece. “As mulheres precisam ser amparadas para que possam voltar ao trabalho e serem produtivas”.
Idade e tipo de tumor influenciam
“Quando falamos do câncer feminino abordamos muitos aspectos: psicológico, relacionado à sexualidade da mulher, o papel que a mulher exerce na sociedade, mudanças que às vezes a gente vê nas relações familiares e de trabalho”, pondera Karime Kalil Machado, médica Oncologista do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein. Junto com mais 11 médicas envolvidas com os tumores femininos criou o grupo Ummas mulheres contra o câncer, em maio de 2020, como canal para discutir assuntos relacionados à saúde da mulher.
Karime acredita que o primeiro impacto do diagnóstico assusta tanto homens quanto mulheres, porque a palavra câncer ainda está muito relacionada à morte, perda de perspectiva e quimioterapia. Entretanto, considera que as mulheres são impactadas de formas diferentes dependendo da faixa etária em que estão e do tipo de tumor. “Hoje os principais cânceres que afetam as mulheres são de mama, intestino e colo de útero, bastante comuns no Brasil, e há um quarto tipo que tem se tornado cada vez mais comum em mulheres, o de pulmão”.
No caso do câncer colorretal, com tratamento geralmente envolvendo quimioterapia e cirurgia, em alguns casos é preciso fazer colostomia (ligação do intestino grosso ao abdômen, com a saída das fezes para uma bolsa), que afeta todos psicologicamente, mas a oncologista avalia que em geral mais as mulheres do que os homens.
O aumento do tabagismo no universo feminino tem como consequência o crescimento do câncer de pulmão em mulheres. Em relação a mudanças comportamentais que ampliam risco de tumores, a obesidade é fator de risco para diversos tipos de câncer, inclusive de mama e colorretal.
A grande maioria dos casos de câncer de mama ocorre em mulheres que já estão na menopausa, mas a médica alerta que há um número não desprezível desse tumor em mulheres na pré-menopausa e em idade jovem. “O tratamento para o câncer de mama em geral envolve cirurgias e ainda que hoje sejam mais conservadoras, esteticamente mais aceitáveis, só por envolver a manipulação de um órgão tão importante para a mulher já tem uma implicação diferente. O tratamento cirúrgico mexe com o que a mulher vê todos os dias no espelho, algo relacionado à sua autoestima e sexualidade”.
Outro aspecto ao qual Karime chama atenção, referente a esse tumor, é o fato de que a maioria das pacientes conhece alguma mulher que teve câncer de mama – seja uma vizinha, professora, conhecida -, uma vez que uma a cada dez mulheres desenvolverá esse tumor ao longo da vida. “Embora as experiências sejam diferentes, quando ouvem falar em quimioterapia sabem que receberão a chamada quimioterapia vermelha, que provoca queda de cabelo. Essa questão do cabelo para a mulher é muito mais significativa do que para o homem, por exemplo, porque faz parte de como ela se identifica”, afirma, explicando que a mulher se pergunta: ‘além de estar com câncer vou perder minha identidade ao longo do tratamento?’.
“Embora nem todas as quimioterapias vão implicar em queda de cabelo, isso é realmente frequente, apesar de hoje termos artifícios para tentar preservar. Contudo, se considerarmos que 75% a 80% das pessoas que têm algum problema de saúde no Brasil serão atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde), poucas vão dispor desses artifícios para evitar a queda”.
A oncologista ressalta outro ponto relacionado ao câncer de mama, que em muitos casos exige também uma manipulação endócrina, tratamentos com bloqueios hormonais. Nessas situações, se a mulher ainda não está na menopausa, frequentemente irá entrar, por conta do tratamento. “Sabendo de tudo que vivemos como mulher, as alterações hormonais desde quando menstruamos, as tensões pré-menstruais, gravidez, puerpério etc., de novo haverá muitas oscilações, com consequências na parte emocional, o que tem um grande impacto. A recomendação em geral é um tratamento por 5 a 10 anos depois da cirurgia e quimioterapia, o que representa um período prolongado de exposição a essas medicações que induzem a menopausa. Não é incomum ver mulheres não aderentes ao tratamento por conta dos sintomas”.
Entrar na menopausa como consequência de tratamento, inclusive de mulheres jovens, implica ter um pouco de perda de cabelo, mudanças na pele, possível aumento de peso, ondas de calor e alterações no desejo sexual. Como relata a médica, são implicações às vezes antecipadas sem a possibilidade de usar artifícios como terapia de reposição hormonal.
Aos aspectos físicos acrescentam-se as questões que envolvem as relações familiares, cuidar dos filhos, muitas vezes a necessidade de pausa para pacientes jovens que estão no auge da carreira. Há ainda a fertilidade que pode ser afetada tanto nos tumores de mama quanto ginecológicos, já que a capacidade de reprodução pode sofrer alteração. Em alguns casos é possível fazer tratamento para preservação da fertilidade, mas em outros a mulher perde a capacidade de engravidar.
“Em relação à idade, no caso da mulher jovem os impactos estão relacionados principalmente à feminilidade, sexualidade e fertilidade. Para as mulheres mais idosas há os aspectos cognitivos – existem relatos na literatura de alterações de memória e da capacidade cerebral em alguns casos, por conta da quimioterapia. Além das mudanças cognitivas, têm alterações de peso, o que tem peso em um país que expõe tanto o corpo. Pode ocorrer ainda acentuação da osteoporose e perda de força”. Essas mudanças, informa Karime, dependem do tipo de tratamento e do tumor. Nesta questão da perda de força, a prática de atividade física mostra-se bastante benéfica, diminuindo os efeitos e melhorando a recuperação depois da quimioterapia.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.