Foto da Capa: Vivian Koblinsky/Divulgação
Lorice Scalise é a presidente da Roche Farma Brasil, uma das principais empresas farmacêuticas do mundo. Com uma trajetória de mais de duas décadas na indústria da saúde, Lorice tem se destacado pelo compromisso com a inovação e com o acesso à saúde.
Nesta entrevista exclusiva ao Instituto Vencer o Câncer, ela compartilha sua visão sobre o papel da pesquisa clínica, da educação e da inovação na transformação do sistema de saúde brasileiro.
Instituto Vencer o Câncer: Lorice, em 2023, quando você assumiu o cargo de presidente da Roche, você reafirmou o compromisso de investimento em inovação, por meio do incentivo à pesquisa clínica, para gerar “cada vez mais valor para os pacientes, para a sociedade e que garantam mais sustentabilidade aos sistemas de saúde”. Você poderia falar um pouco sobre este ciclo virtuoso de geração de valor a partir da inovação?
Lorice Scalise: Podemos falar da saúde como um setor produtivo ou como um fator que impulsiona a economia em vários aspectos, desde a geração de empregos até a própria dinâmica econômica dentro da indústria da saúde. Mas também podemos abordar a relação entre saúde e comunicação, especialmente quando pensamos nos impactos que a falta de assistência ou a fragilidade do sistema de saúde causam na economia e na sociedade. Daí, podemos entrar em outras áreas, como, por exemplo, quando não temos a assistência necessária, trazendo isso para a oncologia.
Quando não há a assistência básica suficiente para tratar o câncer no tempo certo, fazendo com que o paciente – homem ou mulher – não tenha chance de se curar, o impacto econômico e social é enorme. E, quando falamos especificamente do sistema público de saúde, que atende quase 80% da nossa população, estamos falando de um contexto em que muitas famílias dependem de um único provedor, que é também o cuidador da família.
Se a gente se afastar um pouquinho e olhar o Sistema de Saúde brasileiro como ele é, em sua essência e concepção, podemos buscar formas de fazê-lo funcionar da maneira mais correta e equânime. Por exemplo: uma vez que uma droga é aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), ela entra no país como uma alternativa e é regulamentada por uma agência que reconhece os benefícios dessa tecnologia. Deveriam, então, ser pensados, imediatamente, protocolos para que qualquer pessoa pudesse ser atendida.
Claro que, na saúde suplementar, existem diferenças no atendimento em relação ao sistema público. Mas, em termos de tratamento, devemos seguir os tempos e protocolos de acordo com a necessidade da doença.
Neste contexto de desafios, de entender toda a complexidade do Sistema Único de Saúde brasileiro, sabemos que existem questões políticas que precisam ser discutidas, o que também é um grande desafio. Mas a inovação e o incentivo à pesquisa se colocam como essenciais, para que esse maior acesso à saúde aconteça. Como você mencionou, é um ciclo virtuoso que pode beneficiar todos os envolvidos nesse processo.
IVOC: A partir desta lógica, então, como a pesquisa clínica pode contribuir para um maior acesso à saúde no Brasil?
Lorice Scalise: A pesquisa clínica ocupa um papel fundamental na evolução do sistema de saúde. Quando pensamos no desenvolvimento de novos tratamentos, passamos por diversas etapas, desde a concepção de uma molécula até sua produção e distribuição. A pesquisa clínica está nesse caminho, garantindo que a ciência avance com segurança e eficácia.
O Brasil tem um potencial enorme nessa área, mas precisamos ampliar nosso protagonismo. A pesquisa clínica traz autonomia no conhecimento, gera oportunidades de desenvolvimento profissional e conecta nossos cientistas e médicos ao cenário global. Além disso, representa uma esperança para os pacientes, pois permite acesso antecipado a tratamentos inovadores que, muitas vezes, são a única alternativa disponível para algumas condições de saúde.
IVOC: E qual seria, na sua visão, o tamanho deste potencial para o investimento e desenvolvimento de pesquisa clínica no Brasil?
Lorice Scalise: A pesquisa clínica no Brasil possui um grande potencial inexplorado. De acordo com dados da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), atualmente exploramos entre 2% e 5% desse potencial.
No caso da Roche, por exemplo, em 2023, mais de 10% do faturamento da empresa no Brasil foi reinvestido em pesquisa clínica, totalizando aproximadamente R$ 540 milhões. Quando esse número é extrapolado para todas as farmacêuticas que operam no país, o impacto se torna ainda mais expressivo. Em 2024, a Roche Farma investiu mais de R$ 610 milhões em pesquisa clínica no Brasil, crescimento de mais de 10% em relação ao ano anterior.
O Brasil vive um momento oportuno para expandir a pesquisa clínica, especialmente em áreas como oncologia e doenças raras. A Roche tem demonstrado grande interesse nesse crescimento, mas a regulamentação e a infraestrutura local precisam estar preparadas para acompanhar essa demanda global. A recente aprovação do novo marco regulatório para a pesquisa clínica é um avanço positivo, ainda que existam desafios, como o veto de cinco anos para alguns dispositivos.
Em 2023, a Roche expandiu sua atuação no Brasil, com um crescimento de cerca de 30% na realização de pesquisas no país. Foram conduzidos mais de 200 estudos em cerca de 600 centros de pesquisa espalhados pelo território nacional. Esse movimento reflete o compromisso da empresa em ampliar a diversidade dos participantes e fortalecer a estrutura de pesquisa.
IVOC: O investimento em pesquisa clínica também impacta a qualidade do sistema de saúde?
Lorice Scalise: Sem dúvida. A inclusão de protocolos de pesquisa eleva o padrão dos serviços de saúde. Os profissionais envolvidos passam por capacitação constante, aprendem novas abordagens e aplicam melhores práticas. Isso fortalece a rede hospitalar como um todo, melhorando processos e aumentando a qualidade assistencial.
Além disso, a pesquisa clínica também contribui para desafogar o sistema. Pacientes incluídos nesses estudos muitas vezes têm seu tratamento custeado pela indústria farmacêutica, reduzindo a pressão sobre os recursos públicos. É um ciclo virtuoso, onde todos ganham: os profissionais se desenvolvem, os pacientes têm mais opções terapêuticas e o sistema de saúde se fortalece.
IVOC: E quais seriam os atuais desafios para expandir a pesquisa clínica no Brasil?
Lorice Scalise: Um dos desafios fundamentais é reconhecer a pesquisa clínica como um setor produtivo. Atualmente, não há dados consolidados sobre sua posição na cadeia produtiva brasileira ou sua participação econômica.
No entanto, é um setor que cresce entre 30% e 40% ao ano, um percentual elevado em comparação com outras indústrias. Além dos benefícios financeiros, a pesquisa clínica melhora o atendimento ao paciente, fortalece o sistema de saúde e capacita os profissionais envolvidos.
IVOC: A falta de dados estruturados é um problema para o setor?
Lorice Scalise: Sim, a carência de dados estruturados é um obstáculo significativo. Não há uma fonte única que reúna todas as pesquisas clínicas em andamento no Brasil, nem um levantamento consolidado do investimento total no setor.
Cada empresa tem seus próprios dados, mas a falta de integração dificulta a análise do impacto geral da pesquisa clínica no país. Criar uma base nacional de informações seria um passo fundamental para impulsionar esse mercado.
IVOC: Existe uma ponta importante neste ciclo, que você citou acima, que são os profissionais de saúde. Ainda existe um grande desafio em relação à capacitação e dedicação à pesquisa?
Lorice Scalise: Sim, especialmente no setor público. Muitas instituições enfrentam desafios como sobrecarga de trabalho, falta de incentivos e infraestrutura limitada. Por isso, investir na qualificação profissional é essencial. Quando um centro de pesquisa é implementado dentro de uma instituição, por exemplo, ele eleva a qualidade de toda a equipe, pois exige padrões elevados e metodologias robustas.
Hoje, existem programas que têm ajudado a mudar esse cenário, que estimulam a formação de profissionais para pesquisa clínica. Essas iniciativas criam um efeito multiplicador: ao perceberem o valor do conhecimento, os profissionais se tornam mais engajados, e isso melhora a qualidade do atendimento.
IVOC: Por outro lado, o público leigo ainda tem muitas dúvidas e receios sobre a pesquisa clínica. Como mudar essa percepção?
Lorice Scalise: Esse é um ponto crítico. Muitas pessoas não entendem como funciona um estudo clínico, quais são as fases de desenvolvimento de um medicamento e quais são as garantias de segurança. O desconhecimento gera medo.
Por isso, precisamos investir mais em educação. Pacientes devem saber que têm o direito de participar de protocolos de pesquisa, entender quais estudos estão disponíveis e questionar seus médicos sobre alternativas terapêuticas. Há um espaço enorme para melhorar a comunicação entre a indústria, os profissionais de saúde e a população, garantindo que as informações cheguem de maneira acessível e transparente.
IVOC: Todos estes desafios que você elencou acima também são compartilhados pelo Instituto Vencer o Câncer, que enxerga o investimento em pesquisa como fundamental para o avanço da ciência e a oferta de tratamentos de ponta. Como a Roche avalia sua parceria com a Rede Vencer o Câncer de Pesquisa Clínica?
Lorice Scalise: A Roche vê a parceria com o Instituto Vencer o Câncer como uma oportunidade estratégica para expandir a capilaridade dos centros de pesquisa no Brasil. O objetivo não é apenas aumentar a quantidade de estudos, mas também investir no desenvolvimento dos profissionais locais e garantir que a ciência nacional represente a diversidade do país.
A pesquisa clínica no Brasil tem potencial para alcançar um novo patamar, desde que haja um esforço conjunto entre empresas, centros de pesquisa, governo e demais stakeholders. Com os elementos certos — vontade política, talentos qualificados e parcerias estratégicas —, o país pode se consolidar como um polo relevante na pesquisa clínica global, beneficiando toda a cadeia envolvida, desde os profissionais de saúde até os pacientes.
IVOC: Com todo este contexto e desafios nas inúmeras áreas da Saúde, como tem sido sua experiência de quase dois anos na liderança da Roche no Brasil, especialmente no diálogo com diferentes setores?
Lorice Scalise: Tem sido uma experiência enriquecedora. Gosto de provocar o diálogo e buscar pontos de conexão entre os diferentes stakeholders.
Quando falamos de inovação e pesquisa, estamos também falando de investimento, de setor produtivo, de desenvolvimento econômico. O Brasil tem capacidade para ser protagonista nessa área, mas precisamos de mais incentivos, regulação favorável e uma
maior integração entre os setores público e privado. O diálogo constante é essencial para construir soluções sustentáveis.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.