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Fator de risco para câncer e outras doenças, o acúmulo de gordura no fígado é bastante prevalente, mas tem soluções simples

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Um dos fatores de risco para o câncer de fígado e para outros problemas de saúde, o acúmulo de gordura no fígado (esteatose hepática) é bastante prevalente na população brasileira, associado à epidemia de obesidade e sobrepeso. Estudos feitos no país apontam que quase um terço (30,45%) dos brasileiros tem gordura no fígado; quando observamos apenas os obesos ou portadores de diabetes mellitus, o índice chega a 50%, alerta o hepatologista Paulo Bittencourt, presidente do Instituto Brasileiro do Fígado – IBRAFIG e médico da Beneficência Portuguesa de Salvador (BA). “Entre esses 30% com gordura no fígado, 1% tem risco de desenvolver, a longo prazo, cirrose e câncer de fígado. O índice é pequeno, mas o número de pessoas potencialmente acometidas com esse risco é alto, porque a doença é muito prevalente na população”, explica.

Considerando estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de que a população brasileira é de 213 milhões de habitantes, desse total cerca de 65 milhões teriam gordura no fígado e, nesse universo, quase 650 mil têm risco de desenvolver cirrose e câncer de fígado. “A gordura no fígado já é atualmente a segunda causa de transplante nos Estados Unidos; no Brasil ainda é a terceira causa”, acrescenta Bittencourt. “No câncer primário de fígado, cerca de 90% dos pacientes têm cirrose hepática, que é uma doença na maioria das vezes silenciosa. A pessoa que recebe o diagnóstico de câncer de fígado muitas vezes convive com a doença crônica do fígado por anos ou mesmo décadas, sem ter noção de que pode levar a um transplante ou câncer”.

A boa notícia, avisa Bittencourt, é que pequenas mudanças de hábitos de vida, possíveis de serem implementadas sem muito sacrifício, podem garantir bons resultados para os pacientes.

Fabio Kater, oncologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer (IVOC), destaca que o problema é a gordura não controlada. “A sequência habitual é que tenha a esteatose (acúmulo de gordura), que passa para uma esteatohepatite (inflamação do fígado provocada pelo acúmulo, que começa a danificar as células hepáticas) e a partir desse processo de inflamação crônica se desenvolve a cirrose, com o fígado perdendo função depois de muito tempo de inflamação. No processo de cirrose, algumas células podem se perder e se tornar malignas, dando origem ao câncer de fígado”, afirma. “Essa sequência pode demorar de 10 a 15 anos. É uma condição clínica altamente tratável, prevenível, não se deve esperar a sequência toda se manifestar”. Ele lembra ainda que existe câncer de fígado que não é relacionado à doença hepática crônica.

Identificar, tratar e controlar: esses devem ser os objetivos para evitar que a gordura acumulada evolua e provoque complicações. Segundo Bittencourt, a partir da constatação dessa condição é importante avaliar o estágio de desenvolvimento da doença hepática.

Kater acrescenta a relevância da avaliação metabólica para entender porque a pessoa está acumulando gordura no fígado. “A esteatose hepática geralmente está associada à alteração de colesterol e alteração de estado nutricional, mas não obrigatoriamente”.

O oncologista chama atenção para um dado importante: em pacientes com câncer relacionado ao acúmulo de gordura no fígado, de 40 a 50% desenvolvem o tumor no fígado não cirrótico. “Isso significa que não necessariamente precisa passar por toda sequência da cirrose para ter um câncer de fígado associado à esteatose. Quase metade dos pacientes desenvolvem um câncer de fígado com acúmulo de gordura sem nunca ter desenvolvido cirrose”.

A gordura acumulada no fígado já deve ser considerada um alerta para dar atenção a essa condição e evitar a complicação da doença hepática, e não esperar o que seria o segundo alerta, chegar à cirrose, para cuidar da saúde.

 

Como saber se tem acúmulo de gordura

Apesar de o sobrepeso e a obesidade serem importantes fatores para o acúmulo de gordura no fígado, o oncologista ressalta que há pacientes magros com alterações metabólicas e depósito de gordura no corpo, mesmo sem alteração de colesterol. “É o que chamamos de predisposição genética e onde mora o perigo, porque a pessoa pode ser magra, ter um colesterol relativamente sob controle e estar desenvolvendo depósito de gordura, a esteatose”, diz Kater. Por isso, avaliações e check ups periódicos de saúde são essenciais para todos.

Bittencourt cita ainda que existem casos de sobrepeso em que há uma distribuição de forma homogênea pelo organismo e outros em que se tem a obesidade central, abdominal, que é mais nociva e aumenta o risco para doenças como cirrose, câncer de fígado e mesmo outros tipos de tumores e doenças cardiovasculares.

O diagnóstico é feito através de exames de imagem – ultrassom, tomografia e ressonância – para encontrar depósito de gordura no fígado.

Normalmente, quando o paciente tem alteração de colesterol, o médico investiga a repercussão negativa desse descontrole no organismo e nos exames pode descobrir o acúmulo de gordura. Quando a pessoa é magra e não tem alteração significativa de colesterol, a condição pode ser descoberta durante uma avaliação global para risco cardiovascular, por exemplo.

“Todo paciente, independentemente se está magro, com sobrepeso ou obesidade, com alteração de colesterol ou não, precisa fazer uma avaliação de risco cardiovascular a partir dos 50 anos e a avaliação de gordura no fígado pode ser abordada nesse rastreamento”, alerta Kater, destacando que essa recomendação vale especialmente para quem já tem história de doenças do fígado na família. “Atendo muitos pacientes no consultório que contam que o pai morreu de cirrose sem nunca ter bebido. É um alerta de que a pessoa pode ter esteatose familiar, de predisposição genética”.

Bittencourt recomenda que toda pessoa com obesidade, sobrepeso ou diabetes faça exames para avaliação de enzimas no fígado e, caso haja alteração, realize ultrassonografia. “Temos testes não invasivos que podem detectar sinais de gravidade, testes laboratoriais. Há uma relação simples que se faz usando uma máquina de calcular, que chamamos de APRI, em que se coloca o resultado da AST, que é a enzima hepática, e das plaquetas”. Ele avisa que existem calculadoras disponíveis na internet para verificar esse índice, usando resultados de check up e que ajuda a avaliar se a pessoa tem risco maior de ter gordura no fígado com inflamação, fibrose avançada ou cirrose. “À medida que a doença progride, as plaquetas tendem a ficar mais baixas e a enzima hepática tende a aumentar; por isso a vantagem da utilização dessa ferramenta simples, barata e prática para rastrear. Temos uma linha de cuidado proposta para o Ministério da Saúde, para rastrear pessoas sob risco de terem cirrose de fígado, usando tecnologias simples, acessíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), em qualquer posto de saúde”.

Se for detectado um risco maior, o paciente deve procurar um hepatologista para fazer exames complementares e evitar o avanço da doença e até um diagnóstico tardio do tumor, aumentando as chances de tratamento. “No Brasil, aproximadamente 70% das pessoas têm diagnóstico de câncer de fígado em estágio terminal, com média de vida muito curta”, lamenta Bittencourt. Um dos problemas é que muitos são diagnosticados numa fase em que não é possível tratamento curativo ou mesmo paliativo, por falta de conhecimento dos fatores de risco e da importância da modificação de hábitos. “Se considerarmos que as principais doenças associadas à gordura no fígado são obesidade e diabetes, que muitas vezes são controladas com perda de peso, vemos que grande parte desses fatores são modificáveis”.

O desconhecimento da condição de saúde do fígado agrava o desenvolvimento do tumor. “O risco do indivíduo com fibrose avançada e cirrose desenvolver câncer de fígado em 5 anos é em torno de 25%. O risco anual é de 1% a 5%, um risco alto, mas essas pessoas, na maioria das vezes, não sabem se têm cirrose, se têm fibrose avançada ou gordura no fígado, por exemplo, e não fazem exames de rastreamento. Quando chega o diagnóstico, já é uma bomba relógio, em uma fase da doença em que tem muito pouco a fazer”.

 

Pequenas mudanças, grandes efeitos

Quando avisa que pequenas mudanças nos hábitos já podem garantir bons resultados, o hepatologista ressalta: para quem tem gordura no fígado, na maioria das vezes não é necessária uma grande redução no peso para melhorar a condição do órgão. Uma perda de 5% do peso já reduz a quantidade de gordura no fígado; uma perda de peso de 7% é capaz de diminuir a inflamação associada à gordura. “Se a pessoa perde 10%, até a fibrose, que até pouco tempo atrás era tida como uma alteração irreversível, pode ser reduzida”.

Ele esclarece que a perda de peso deve ser obtida associando prática de atividade física com mudança alimentar. “Uma dieta balanceada pode levar a resultados muito positivos no controle da doença, prevenindo o surgimento de cirrose e câncer de fígado. Nada que não seja possível fazer e implementar na vida diária. Não é um grande sacrifício. A perda de peso pode não ser a desejável para efeito estético, por exemplo, sem melhora para outros órgãos, mas com melhora para o fígado”.

Os grandes sacrifícios, aliás, são questionados, já que acabam criando uma rotina que não é sustentável a longo prazo, como uma dieta muito restritiva. A indicação para todos os pacientes é alteração de hábitos de vida, com uma dieta mais hipocalórica, pobre em gorduras, sem muitos alimentos processados, rica em legumes e vegetais, com pouca frutose adicionada, que é bastante comum em produtos industrializados. “A alimentação de risco para essa doença é aquela que tem dietas hipercalóricas, comida multiprocessada, muito rica em carne vermelha, e dietas com muita frutose adicionada em que se consome bastante fast food, batata frita, fritura, suco de caixinha e refrigerante. Essa é a dieta que mais propicia doença hepática não alcoólica”.

Para a atividade física, Bittencourt aponta como primordial pelo menos 150 minutos por semana, reunindo tanto atividade aeróbica quanto musculação, exercícios que ajudem na perda e manutenção do peso e aumentem o tônus muscular.

“Em alguns casos será indicado uso de medicamentos, sob orientação médica, principalmente nos que apresentam inflamação e fibrose”, diz, mas já avisando: “Não existe medicação milagrosa hoje em dia para quem tem gordura no fígado, por isso é fundamental a mudança de estilo de vida, com perda e manutenção do peso, atividade física sustentada aliada a uma dieta balanceada e saudável”, complementa Bittencourt.

 

O risco do álcool

Para quem é alcoólatra ou ingere álcool com frequência, Kater alerta para o risco não apenas da doença hepática de origem alcoólica, mas também do acúmulo de gordura no fígado relacionado ao consumo de álcool. “É comum nas pessoas que bebem socialmente, nos finais de semana, esporadicamente, esse tipo de alteração textural hepática de esteatose. É importante deixar claro que não existe uma dose segura de álcool. A única dose segura é zero álcool”.

Diminuir a quantidade ou parar de beber ajuda a melhorar o fígado gorduroso e pode até bloquear o processo, mas às vezes, pondera o oncologista, o mecanismo pelo qual o acúmulo de gordura leva ao desenvolvimento do câncer de fígado está ligado a fatores genéticos que podem ter sido desencadeados pela bebida e não parem mais. “O processo de desenvolvimento do câncer é complexo, multifatorial, envolve estilo de vida e alterações genéticas. Se a pessoa parar de beber, vai mexer no fator de estilo de vida, mas não no genético”.

 

Diagnóstico do câncer de fígado

Segundo o oncologista, não há método de rastreamento para câncer de fígado relacionado apenas ao acúmulo de gordura – existe somente depois que o paciente já desenvolveu alguma hepatopatia crônica. “Se o paciente fez esteatose (acúmulo de gordura) e desenvolveu uma cirrose, aí sim tem um programa de rastreamento. Se não tem doença hepática crônica, não vai entrar em um programa de rastreio e pode ser um daqueles 40% a 50% que têm chance de desenvolver câncer de fígado mesmo sem chegar à cirrose”.

O rastreamento nessa população de risco é semestral ou anual, fazendo ultrassom com ou sem dosagem de alfafetoproteína. “A literatura é um pouco controversa. A própria alfafetoproteína, que é o marcador tumoral do câncer de fígado, a proteína no sangue que se dosa para diagnóstico de câncer de fígado, não é completamente reveladora da presença de um câncer. Ela tem falsos positivos e não obrigatoriamente se eleva em todas as condições, ou seja, pode ter falsos negativos. Por isso o ideal é que se complemente com ultrassom”.

Segundo Kater, uma característica particular do diagnóstico do câncer de fígado é o fato de ser um dos poucos tumores em que está autorizado o tratamento apenas com o resultado da imagem e o nível de alfafetoproteína, não sendo necessária obrigatoriamente a realização da biópsia. Entretanto, ele acredita que essa prática, de abrir mão da biópsia no diagnóstico, não deve ser incentivada, já que a medicina caminha para a personalização do diagnóstico com a categorização molecular das doenças para um tratamento mais direcionado e, para isso, o resultado da biópsia é fundamental. “Tem que haver incentivo ao diagnóstico anatomopatológico, à realização da biópsia, porque propicia pesquisas sobre entendimento melhor da doença”.

 

Avanços no tratamento

O oncologista comemora os avanços no tratamento do câncer de fígado tanto na doença localizada quanto nos medicamentos. Na doença localizada há mais expertise em tratamentos direcionados, como quimioembolização, em que é feito cateterismo na veia que nutre o tumor e lá dentro é colocado o quimioterápico que matará a lesão. “O procedimento é realizado por profissionais intervencionistas, uma especialidade que tem crescido bastante, o que possibilita maior expertise e controle melhor de doenças”.

Ele cita ainda outra técnica, disponível no Brasil dentro da regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de radioembolização, que injeta substância radioativa depois do cateterismo na veia nutridora do tumor, para que destrua as células tumorais. “A grande vantagem desse método é que para a quimioembolização as veias do fígado não podem estar trombosadas, não podem estar obstruídas pelo câncer. A radioembolização pode ser feita mesmo com as veias entupidas. O procedimento também é realizado por um radiologista intervencionista, por isso é tão importante a incorporação de novos profissionais no tratamento multidisciplinar dessa doença”.

Em muitos casos o tratamento curativo do câncer de fígado em quem tem cirrose envolve o transplante de fígado. Por isso, a queda da doação de órgãos em cerca de 30% durante a pandemia tem prejudicado os pacientes que aguardam doadores.

No tratamento sistêmico, uma mudança no final de 2019 promoveu uma grande melhora de resultados. “Antigamente usávamos apenas antiangiogênicos no tratamento inicial. A partir de estudos apresentados à comunidade científica no final de 2019 e incorporado já nas práticas clínicas brasileiras a partir de meados de 2020 o tratamento padrão passou a ser uma combinação de antiangiogênicos com imunoterapia”, diz. “Mudou completamente. A imunoterapia incorporada ao tratamento inicial junto ao antiangiogênico dá mais chance de o tumor responder, do tumor demorar para voltar e o paciente viver mais. Essa combinação foi melhor do que cada uma das modalidades isoladas”.

Para o futuro, Kater revela que há pesquisas de combinações de classes de remédios semelhantes, de dois tipos de imunoterapia, por exemplo, ou imunoterapia com outros antiangiogênicos, com objetivo de descobrir a melhor combinação para o tratamento desse tumor que possa trazer um resultado mais efetivo. “Melhorou muito. Felizmente passamos a marca de um ano de expectativa de vida na doença mais avançada, beirando os dois anos; os avanços são pequenos, porém efetivos. Temos terapias mais efetivas, o oncologista entra cada vez mais precocemente no tratamento e há a incorporação de radiologista intervencionista. Essa multidisciplinaridade é fundamental, reunindo radiologistas especializados na atenção ao cuidado do paciente com câncer de fígado, cirurgiões com expertise com grupos de transplante disponíveis. Tudo isso é importante”.

 

Saiba mais sobre as doenças do fígado

O site do IBRAFIG conta com um canal chamado Tudo sobre fígado, para conscientização da população. “Tratamos de prevenção e diagnóstico precoce das doenças hepáticas, com orientações aos pacientes também sobre tratamentos e desmistificando dietas milagrosas, que não são recomendadas para quem tem gordura no fígado, porque o indivíduo faz uma dieta muito restritiva sem mudar hábitos e a maioria volta a ganhar peso”, avalia Bittencourt, alertando para as informações falsas em relação a produtos detox, chás emagrecedores, entre outras opções que parecem oferecer uma solução de curto prazo. “As pessoas vão na ilusão e nada disso funciona. Devem entender que não precisam de grandes alterações. Pequenas manobras podem ser suficientes para ter uma vida saudável, reduzir a gordura acumulada, prevenir a cirrose e o câncer de fígado”.

 

Para saber mais: https://tudosobrefigado.com.br/

Logotipo do Instituto Vencer o Câncer

O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.

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