O mieloma múltiplo é um câncer sanguíneo cruel: o tratamento mais eficaz não pode ser aplicado na maioria dos atingidos. Ele só é curável em casos muito específicos, quando é localizado em um único ponto e após um transplante de medula. O transplante, porém, é um procedimento agressivo que a maioria dos idosos – em quem a doença mais incide — não pode suportar.
Segundo a Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia), não existem dados oficiais sobre a doença no Brasil, mas sabe-se que, embora a incidência em pessoas entre 40 e 50 anos esteja aumentando, cerca de 80% dos 30 mil doentes têm mais de 60 anos. É para esses que mais interessam os avanços apresentados na ASH 2014, o maior congresso de doenças hematológicas, realizado todos os anos pela American Society of Hematology.
Entre dezenas de doenças hematológicas, como anemia e talassemia, eram os cânceres sanguíneos que ocupavam o maior espaço nos painéis e apresentações. Entre esses, o mieloma múltiplo foi um dos destaques. Segundo câncer hematológico mais frequente, mais de 700 estudos apresentados no evento relacionam-se com ele.
Tratamento tradicional
O mieloma múltiplo afeta células da medula óssea, tecido esponjoso que se encontra no interior da maioria dos ossos. A doença se caracteriza principalmente pela produção anormal de plasmócitos (células que participam do sistema imunológico) defeituosos, que passam a comprometer o funcionamento das células normais e a produzir um anticorpo chamado proteína-M, usado como indicativo da doença porque só é produzida pelos plasmócitos anormais do mieloma.
“No Brasil, o diagnóstico é tardio. É comum o paciente chegar com fratura ou alguma lesão óssea, anemia ou insuficiência renal. Raramente o diagnóstico é feito com a doença ainda assintomática”, afirma o dr. Celso Arrais, oncologista do Hospital Sírio-Libanês. Tal fato torna-se mais incompreensível ao se constatar que a eletroforese de proteínas, um exame capaz de identificar a proteína-M no sangue ou na urina e se ela está em quantidade que pode indicar o mieloma múltiplo, é muito barato – cerca de R$20 – e está disponível na rede pública. Ele só não faz parte do rol de exames de rotina comumente pedidos pelos médicos. [relacionados]
De acordo com Arrais, após o diagnóstico tradicionalmente aplica-se quimioterapia. “Posteriormente, o tratamento pode finalizar com o transplante de medula. O mieloma múltiplo é o principal motivo de indicação de transplante de medula. Em geral autólogo (usando células sadias da medula do próprio paciente), pois o halogênico muitos serviços nem indicam”. O problema é que o procedimento só é indicado para pacientes em bom estado de saúde, o que não é a condição mais usual na faixa etária da maioria que sofre com o tumor.
Para doentes mais debilitados ou aqueles que tiveram recaída, restam terapias com medicamentos que visam a transformar o mieloma múltiplo em uma doença crônica, como o diabetes: o paciente convive com ela, mas consegue controlá-la.
Um dos medicamentos mais utilizados com esse objetivo é a talidomida. Embora tenha ficado famosa no final dos anos 50 como um sedativo que tardiamente descobriu-se ser causador de malformação em fetos (principalmente encurtamento ou ausência de membros), ao longo do tempo foram melhor estudados seus benefícios com uso controlado, entre eles no tratamento da hanseníase e do mieloma múltiplo.
Mas, como acontece com grande parte dos cânceres, nem sempre o tratamento de primeira linha (aquele eleito como a melhor escolha a ser aplicada em um quadro da enfermidade) tem bom resultado, o que restringe as alternativas de tratamento. “Em geral, a forma de prever se um paciente terá boa resposta é verificando se ele tem uma boa resposta logo no início”, explica Arrais.
No Brasil, o debate mais acalorado gira em torno de um medicamento da mesma classe da talidomida que é tido como a melhor opção quando a primeira tentativa não tem bom resultado. Envolvida em quase metade dos estudos e painéis que tratavam do mieloma múltiplo na ASH 2014, a lenalidomida coloca em confronto a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), entidades médicas e de pacientes.
Registro negado
“Atualmente, os tratamentos de escolha para os mais velhos, não-candidatos ao transplante ou aqueles em que a doença voltou, baseiam-se principalmente em lenalidomida”, afirma Arrais. O medicamento oral, porém, teve seu registro negado duas vezes pela Anvisa, em 2010 e 2012. A principal justificativa dada pela agência é que os estudos apresentados no pedido não demonstravam superioridade do remédio à alternativa já aprovada no Brasil. “O registro do medicamento contendo lenalidomida foi negado porque a empresa Zodiac Produtos Farmacêuticos apresentou um estudo clínico comparando seu produto com tratamento envolvendo o uso de placebo (produto sem nenhuma ação farmacêutica) e não a outro com igual indicação terapêutica já existente no mercado brasileiro desde 2005” (veja a íntegra da nota aqui).
Os defensores da lenalidomida rebatem alegando principalmente que o medicamento seria uma alternativa para aqueles que não respondem ao tratamento de primeira linha. O fármaco teria menos efeitos colaterais que outros remédios comumente usados no Brasil em casos de reincidência ou tumor refratário ao tratamento inicial. Além disso, reforçam que o remédio já é aprovado em cerca de 70 países, incluindo países da Europa, Estados Unidos e Japão.
No Brasil, rápidas pesquisas sobre o tema retornam uma série de argumentos, audiências no Senado e pareceres médicos. Desde fevereiro de 2014 uma petição online no Avaaz tenta reunir duas mil assinaturas para pressionar o Congresso. Para quem decide agir por conta própria, driblar a decisão da Anvisa exige muito tem po e muito dinheiro. “Algumas pessoas conseguem obter o medicamento informalmente ou por via judicial”, afirma o dr. Arrais. São poucos os que conseguem importar o medicamento por conta própria, já que o custo do tratamento pode chegar a R$ 20 mil por mês.
O custo entra no debate não só pelo lado do paciente. Enquanto a lenalidomida é um fármaco recente, protegido por patente, a talidomida no Brasil é fabricada pela Fundação Ezequiel Dias, instituição pública ligada ao SUS (Sistema Único de Saúde), o que faz dela uma alternativa muito mais barata.
Mesmo com as negativas, o tratamento do mieloma múltiplo progrediu nos últimos tempos. “Nos anos 2000, o prognóstico era muito ruim. Hoje, o objetivo é ficar pelo menos cinco, sete anos com a doença controlada. Temos pacientes com tumor resistente que ficam até dez, 15”, afirma Arrais. Enquanto isso, o debate no Brasil não deve esmorecer: a pomalidomida, terceira geração de drogas que inibem o mieloma múltiplo, ganha cada vez mais espaço nos congressos médicos.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.