“A tecnologia não vai substituir o ser humano, mas complementar” – assim o oncologista Fernando Maluf, um dos fundadores do Instituto Vencer o Câncer, avalia a relação dos profissionais de saúde com os avanços da inteligência artificial e outras tecnologias. Muitas inovações já são realidade na rotina da saúde, e outras apontam um futuro promissor em curto e médio prazo.
Um dos exemplos dessa atuação em conjunto que garante mais resultados, citado pelo especialista, é o suporte que a inteligência de máquina tem trazido para o diagnóstico precoce em tumores como o câncer de mama. “Há estudos recentes que apontam a triagem usando inteligência artificial”, avisa. “Sabemos que o câncer mais comum é o de mama: de cada oito mulheres uma terá câncer de mama durante a vida. Sabemos também que mamografia e ultrassom são os exames mais importantes em termo de diagnóstico precoce. Recentes estudos vêm mostrando que o computador treinado para ler mamografia consegue ter um olhar interessante, bem específico para o diagnóstico precoce, muitas vezes até quando o olho humano não consegue enxergar com tanta acurácia”.
Fernando Maluf considera esses avanços ainda mais importantes em um país como o Brasil, que tem um déficit relevante na área médica dentro do sistema público. “Dependendo do local, a inteligência artificial vem nos ajudar para complementar, às vezes, a falta do número de pessoas”.
Câncer de pâncreas: levantamento com dados de pacientes e uso de inteligência de máquina promovem mudança de protocolo para melhor tratamento
O oncologista clínico Fernando Moura, gerente médico do Programa de Medicina de Precisão do Hospital Israelita Albert Einstein, traz exemplos que já são realidade no consultório, com trabalhos desenvolvidos no programa.
Um deles, relacionado a câncer de pâncreas, teve início a partir do levantamento interno que identificou cerca de 250 casos diagnosticados e que eram passíveis de tratamento cirúrgico. “Até pouco tempo atrás acreditávamos que quimioterapia neoadjuvante pré-operatória para todos esses casos de câncer de pâncreas ressecáveis era a melhor conduta”, afirma Moura. “Vimos, ao longo desse processo, que alguns pacientes progrediam a doença na vigência da quimioterapia e perdiam a oportunidade de operar, porque o câncer crescia e se tornava inoperável, apesar de o paciente estar fazendo quimioterapia”.
O procedimento, que tinha objetivo de ajudar, inclusive reduzindo o risco de metástase, estava atrapalhando em alguns casos. Para entender o que ocorria, revisitaram os dados com o Departamento de Medicina de Precisão, explorando detalhes dos pacientes, desde gênero até a minúcia da patologia.
“Descobrimos que com quase 20% dos pacientes perdíamos oportunidade de operar fazendo tratamento quimioterápico de modo aleatório. Fizemos analytics, que é uma inteligência de máquina ainda bastante superficial, para tentar entender que elementos poderiam nos ensinar a separar o paciente que não vai bem ao tratamento quimioterápico versus aquele que de fato vai bem – porque a grande maioria vai bem”, ressalta o oncologista.
Esse trabalho levou a insights genéticos e genômicos a partir dos dados dos pacientes analisados no software desenvolvido dentro do hospital. Os resultados foram publicados e apresentados no Congresso da ASCO (American Society of Clinical Oncology) de janeiro deste ano.
“Estávamos curiosos para saber se era nossa realidade. Fizemos uma metanálise com quase 3 mil publicações, separamos algumas delas, filtramos e documentamos o mesmo achado dos nossos dados internos e publicamos essa metanálise no ESMO Open, jornal europeu, em meados de abril/maio”, explica, complementando que no encontro da ASCO, em junho, um estudo prospectivo de fase 2 fez a mesma documentação de resposta ao que o projeto estava questionando, porém fazendo intervenção no tratamento do paciente.
“Tivemos o mesmo achado analisando dados. O estudo com intervenção, além de ter um alto custo, expõe pacientes a um tratamento que não está ajudando. Nós já tínhamos aprendido isso com base apenas em dados”, comemora. “Com o nosso aprendizado de dados, modificamos nosso próprio protocolo de tratamento de câncer de pâncreas. Virou um círculo virtuoso a partir de dados”, enfatiza Moura.
Um exemplo na medicina materno fetal: reduzir riscos e se preparar melhor
Fernando Moura conta que os resultados de ultrassonografia de quase 38 mil pacientes gestantes possibilitaram observar, através de análises exploratórias, que o fluxo da artéria uterina esquerda tem correlação com o baixo peso ao nascimento do bebê. “Vimos isso em nossa casuística, fomos olhar para a literatura, que já contava essa história. Se no ultrassom de uma gestante de 20 semanas, 18 semanas, o fluxo da artéria uterina esquerda está baixo, isso prediz baixo peso ao nascimento, porque chega pouco oxigênio e nutrientes”, cita.
“Construímos um algoritmo baseado em inteligência artificial que a partir dessa informação de baixo fluxo da artéria uterina esquerda a gente já prediz baixo peso ao nascimento na 12ª. semana. Esse dado é importante porque temos três ações a tomar: 1. Intervir com medicação para melhorar o fluxo da artéria e reverter essa tendência de baixo peso ao nascimento. 2. Preparar leitos de UTI neonatal. 3. Temos a oportunidade de compartilhar custos com a família e com a operadora, porque o nascimento de baixo peso custa seis vezes mais no nosso sistema do que um nascimento com peso normal”, ressalta o médico.
Fernando Moura acredita que essa estratégia de inteligência baseada em dados vai influenciar cada vez mais o desenho, a análise e talvez até mesmo as condutas prospectivas daqui para frente. “É realidade na nossa medicina de precisão”.
IA ajuda a detectar precocemente câncer de mama com análises de mamografia e exames de sangue
Já existem trabalhos demonstrando a eficácia da inteligência artificial aprimorando a Oncologia, como estudo publicado em agosto na Lancet
realizado na Suécia com cerca de 80 mil mulheres indicando que a IA pode ajudar a detectar câncer de mama, com material que orienta melhor as análises dos radiologistas.
Há ainda o modelo de aprendizagem do Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência da Computação (CSAIL) do MIT e do Hospital Geral de Massachusetts (MGH), que possibilita prever desenvolvimento de câncer de mama cinco anos antes, com base em mamografia. Para essa análise, a tecnologia usa de base resultados de mais de 60 mil pacientes, aprendendo com os padrões do tecido mamário que são percussores de tumores.
Há ainda um trabalho sendo realizado no Brasil, uma ferramenta desenvolvida por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que será testada por operadoras de saúde e identifica sinais precoces de câncer de mama com base na interpretação de exames de sangue de rotina.
Thiago Willian Carnier Jorge, oncologista clínico coordenador do grupo de tumores gástrico intestinais do Hospital Osvaldo Cruz e diretor médico da startup We Cancer, considera que um dos desafios será aprender como lidar com as informações que a inteligência artificial traz e como a interferência a partir dos dados pode alterar o desfecho.
“Se descubro que a paciente que fez mamografia tem chance de desenvolver câncer em cinco anos, o que vou fazer? Aumentar o número de mamografias? Ela vai querer tirar a mama porque tem o risco? Se tiro a mama, nunca terei certeza se terá ou não câncer de mama. O que deve acontecer é ficar mais atento à paciente ou até reduzir o tempo entre os exames”, opina, acrescentando que no caso do câncer de mama a decisão é mais tranquila, mas não é tão simples com outros tumores como estômago, intestino e pâncreas.
“O tumor de pâncreas quando dá sinais a chance de cura cai drasticamente. Se tenho a informação de que pode aparecer em cinco anos, vou operar? É uma cirurgia que tem alta chance de complicação. Esse será o tipo de dilema que começaremos a ter”, questiona.
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O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.