Depois de um tumor no sangue aos 17 anos e transfusão de mais de 100 bolsas, Marcos descobriu a importância da doação. Hoje, secretário de educação em sua cidade, faz campanhas.
Amigo de sangue: “Nossa amizade ficou mais forte. Eu vivo dentro de você em sangue”. Essa declaração de amizade que emocionou Marcos Vinícius Carrijo de Freitas – e dificilmente não emociona quem ouve sua história e entende o contexto – foi feita por Nildman depois que ele atravessou os quase 500 km que separam a cidade de Ribeirãozinho, no Mato Grosso, da capital de Goiás, Goiânia, para doar sangue ao amigo. “O sangue dele era compatível com o meu. Mesmo que eu não tenha recebido a bolsa dele, de uma forma ou de outra ele doou para mim. Falamos disso até hoje, da força da nossa amizade”.
Marcos não terá como saber se a doação do amigo estava em uma das mais de 100 bolsas de sangue que recebeu de setembro de 2005, quando teve o diagnóstico de leucemia mieloide aguda (LMA), até a notícia da remissão em 2006. “O mínimo de plaquetas é de 150 mil e a minha chegava a 2 mil. Eu estava prestes a morrer. Chegava a tomar duas bolsas por dia; precisava me recuperar rápido. Tive muita anemia também”. A LMA é um tipo de câncer do sangue e da medula óssea caracterizada por acúmulo de células que não se desenvolveram completamente; ela interfere na produção normal de glóbulos brancos e vermelhos e de plaquetas.
“Sem transfusões não daria para tratar muitas dessas doenças”, afirma o onco-hematologista Phillip Scheinberg, membro do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer, referindo-se especialmente a alguns tumores ligados à sua especialidade, sem descartar a necessidade de transfusões em muitos outros casos de câncer, principalmente quando há realização de cirurgia. Essa informação é importante para esclarecer que a doação de sangue ajuda pacientes de diversos tipos de doenças – desde alguém que sofreu um acidente até quem passa por uma cirurgia. E também pacientes com câncer.
A doença estava bastante avançada quando Marcos a descobriu, então com 17 anos. “Eu me desesperei porque naquela época era difícil lidar com esse tipo de doença. Só ouvia que câncer matava e nada mais do que isso. Minha família também ficou desesperada. Eu estava no 3º ano do Ensino Médio e tinha planos. Queria ser professor”. Como a LMA se desenvolve rapidamente, era preciso pressa e por isso começou a quimioterapia quatro dias depois do diagnóstico.
Por mais que buscasse otimismo, ele lembra que só conseguia pensar que iria enfrentar o câncer e esperar a morte. Esse estado de ânimo só começou a mudar 30 dias depois, ao saber que a quimioterapia teve o resultado esperado. “Foram saindo da minha cabeça as questões de morte. Comecei a querer lutar contra a doença”.
Com o bom resultado do tratamento, veio a esperança. Com o apoio da família, a força que precisava para enfrentar tão jovem um tumor. A motivação foi consequência do carinho que recebeu dos cerca de 3 mil habitantes de Ribeirãozinho. “Todo mundo conhece todo mundo. O pessoal da cidade começou a fazer festas, eventos para arrecadar dinheiro, porque o custo era alto – eu fazia o tratamento em Goiânia e eram muitas viagens. O carinho de todos me motivou para lutar contra aquilo”.
Aquilo, a leucemia mieloide aguda, estava saindo da vida de Marcos. Em 2006 ele teve a notícia de que o tumor entrou em remissão e depois viveu o que considera a pior fase que o paciente passa, a espera de cinco anos para verificar se não vai voltar. Ele ainda tomava quimioterapia, de forma oral, mas o pior era conviver com a angústia. “Eu não era mais doente, mas volta e meia meu psicológico dava uma recaída”.
Mas, como ele diz, “foi tudo dando certo graças a Deus”. Em 2007 passou no vestibular de Biologia da Universidade do Estado de Mato Grosso. Sabia que não seria fácil ir morar sozinho, ainda em tratamento, em uma cidade que o deixaria a 300 km do tão importante apoio da família. Recorda que teve uma recaída emocional. “Achava que estavam me deixando ir porque eram meus últimos dias”.
Era seu sonho, o curso que sempre quis fazer, por isso Marcos foi. A cada seis meses ia a Goiânia realizar seus exames. A conclusão da faculdade veio em 2011, junto com seu atestado de alta médica. “Não parei. Continuava indo a Goiânia fazer exames, porque tinha medo. O medo não passa. Só quem já passou por um câncer sabe o que é viver coisas ruins. Hoje vejo a vida totalmente diferente”.
Ele retornou para sua cidade, onde se tornou professor, depois foi coordenador de uma escola e hoje é o secretário de Educação de Ribeirãozinho. Fez especialização e está cursando mestrado. “Lutei com todas as armas que eu tinha” diz, com orgulho, sem esquecer de agradecer a família, os amigos e os moradores de sua cidade. Até porque, Nildman não foi o único que cruzou 500 km para doar sangue por Marcos. A campanha da família fez com que muitos ribeirãozenses viajassem a Goiânia para fazer a doação.
Para o doador, é só um “furo”
“A cada bolsa de sangue que eu recebia, precisava levar três doadores. As pessoas diziam que seria fácil conseguir doadores porque Goiânia é grande, capital, mas não é assim. A vida é corrida e as pessoas não param para doar. Pensam que ir ao hemocentro doar sangue é perda de tempo”, comenta Marcos, lembrando da centena de bolsas que precisou utilizar. “Percebi a dificuldade que minha mãe teve em Goiânia, sem conhecer ninguém. Ela fez campanha nas redes sociais, no Corpo de Bombeiros. Levamos gente de Ribeirãozinho. Minha mãe passava o dia inteiro na porta do hemocentro e quando chegava alguém para fazer doação, entregava um cartão e pedia para doar em meu nome”.
Por todas as dificuldades que ele e a família passaram para conseguir o sangue necessário para o hemocentro em que fazia tratamento, depois que se tornou professor fez várias campanhas por doação em sua cidade. “Se eu pudesse mobilizaria cidades e cidades a favor da doação de sangue e medula óssea. Pessoas saudáveis podem doar, porque não vai mudar nada para elas. É apenas um ‘furinho’. Como dizem: cada doação salva três vidas, com os componentes do sangue”.
Marcos tem razão: doar sangue não afeta em nada a saúde do doador. O corpo humano tem um volume de cerca de 70 ml de sangue por quilo – a média estabelecida é que um adulto tem 5 litros de sangue, com algumas variações por idade, peso e gênero. Por isso, o volume a ser doado é proporcional ao peso do doador, somando 9 ml por quilo para homens e 8 ml por quilo para mulheres. Em um dia o doador recupera o volume sanguíneo doado e de duas a quatro semanas os glóbulos vermelhos são repostos. Os estoques de ferro voltam aos níveis normais em 8 semanas nos homens e em 12 semanas nas mulheres.
Transfusões em tratamentos de tumores do sangue
“Nos tumores hematológicos, a principal questão é que usamos esquemas na hematologia que deprimem muito a medula óssea. Geralmente, em tratamentos para tratar leucemias agudas ou transplante de medula óssea, precisamos fazer transfusão de sangue ou de plaquetas”, avisa Phillip Scheinberg. Ele explica que é necessário realizar esse tratamento de suporte no momento em que o organismo do paciente não tem capacidade de produzir quantidade suficiente e precisa repor. “Às vezes a medula óssea para de funcionar em algumas doenças e a produção passa a diminuir de forma significativa. Por isso o banco de sangue tem ligação com a hematologia não só para câncer, mas também situações em que a medula não funciona de forma adequada”.
As situações em que costuma ser mais necessária a transfusão, relata o onco-hematologista, são casos de transplante de medula óssea, leucemias, mielodisplasia (pré-tumor) – síndrome mielodisplásica. “Essa síndrome necessita não só da doação de sangue, mas transplante também”. Costuma ser necessário realizar transfusão de sangue ainda nos casos de mieloma múltiplo e linfoma com transplante autólogo (da própria pessoa). Scheinberg esclarece que há drogas usadas nos tratamentos que praticamente fazem a medula parar de funcionar. “Nesses casos, é preciso aporte transfusional até que a medula volte a funcionar, o que pode levar de duas a três semanas”.
O médico destaca que os tratamentos de tumores hematológicos têm contado com importantes novas drogas nos últimos cinco anos. “Temos menos mortes e conseguimos controlar a doença por mais tempo. Há muitas pessoas que estão vivas por conta dessas terapias”, afirma, referindo-se às imunoterapias, terapias-alvo que identificam determinadas alterações genéticas no tumor e terapia celular.
“Com a melhoria dos tratamentos que temos na hematologia oncológica, a necessidade de transfundir pacientes tem caído. A doença é mais controlável, há melhora da função da medula óssea, que passa a produzir mais sangue”. Mas alerta, lembrando a importância da doação para ajudar também pacientes de tumores hematológicos, que envolvem diretamente o sangue e as células sanguíneas: “Usamos menos, mas ainda usamos. O banco de sangue passa visita com a gente, junto com equipe multidisciplinar que inclui psicólogo, fisioterapeuta, entre outros. A questões são tão prevalentes, diárias, que fazem parte do nosso esquema”, cita, explicando a necessidade cotidiana de doações de sangue também para a área de onco-hematologia.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.