Tempos atrás, câncer era uma palavra proibida. Quando falavam no assunto, os mais velhos costumavam falar ‘aquela doença’. Por muitas gerações o câncer era uma doença oculta da família, e às vezes do próprio paciente. Hoje, a postura mais recomendada é que cada membro da família esteja consciente da questão para que possa ajudar da sua maneira. Afinal, todos os membros da família são afetados pelo diagnóstico.
Mas existe uma maneira adequada para conversar com os filhos sobre o diagnóstico? Qual o momento certo? “Tudo vai depender de como a família é formada, qual a dinâmica emocional que já existia anteriormente ao próprio diagnostico”, explica Armando Ribeiro, psico-oncologista do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes.
Segundo Armando, a notícia deve ser adequada de acordo com a capacidade emocional e intelectual de cada faixa etária. Crianças muito pequenas podem nem entender o que é o câncer, mas elas geralmente percebem o pesar no entorno familiar através de comportamentos não-verbais, como por exemplo o olhar de apreensão dos pais, uma certa emoção de tristeza. “O maior erro é pensar que a criança não participa de todo esse processo do enfrentamento da doença. É comum os pais excluírem a criança ou adolescente de toda essa temática, e geralmente esse tipo de reação acaba trazendo problemas emocionais e comportamentais mais graves”, diz.
Cada criança, de acordo com a sua faixa etária, vai fantasiar de uma forma diferente. Crianças pequenas muitas vezes se sentem responsáveis por alterações de humor dos seus pais. Por isso deve-se deixar claro que essas alterações não são responsabilidade da criança, que fazem parte daquela doença, daquele tratamento.
“Para crianças muito pequenas o diálogo pode ser mais genérico. Nem sempre é preciso falar que o pai ou a mãe está com câncer. O ideal é explicar que é um problema de saúde, uma fraqueza, que em alguns momentos o pai ou a mãe doente vão estar um pouco mais cansados, desanimados, enjoados”.
Foi o que aconteceu com a família de Rogério de Sousa Oliveira, diagnosticado com mieloma múltiplo quando sua filha, Luisa Martins Oliveira, tinha quatro anos de idade. Rogério estava acostumado a pegar a filha no colo, brincar e correr atrás da menina. A doença trouxe um cansaço nas pernas, o que acabou limitando essas atividades. “Como ela era muito nova, conversamos com ela, e naquele momento falamos apenas que eu estava com problema nas pernas, que sentia muito cansaço e por isso não podia brincar como antes. Preferimos falar dessa forma, sem entrar em detalhes minuciosos”, conta.
Sua esposa, Elaine Martins, conta que segurou o quanto pôde, mas como estavam às voltas com exames e consultas, Luisa começou a questionar a ausência dos pais. “Ela sempre foi muito madura e quando a gente tentava enrolar, ela não dava sossego. Sentia que tinha algo diferente, queria entender o que estava acontecendo. Eu sabia que teríamos que contar, porque ainda tínhamos o tratamento todo pela frente. Então fui conversando, falei que o papai estava com um probleminha. Eu precisava explicar porque o papai, de uma hora para outra, não podia mais fazer as atividades que eram de costume”, recorda.
Assimilando a notícia
Uma vez ciente do diagnóstico, a criança passa por uma fase de assimilação da notícia. Algumas podem encarar de uma forma melhor, apresentar maior resiliência. Outras, no entanto, podem apresentar problemas, que nem sempre aparecem tão logo. Mas como perceber que a criança ou adolescente estão sofrendo com o adoecimento dos pais? Quais os sinais a que devemos ficar atentos?
Baixo rendimento escolar e problemas de comportamento são alguns deles. Se a criança era ativa, extrovertida, e começa a se distanciar dos amigos, deixa de frequentar os ambientes que costumava, é hora de ter uma conversa ou, quem sabe, procurar ajuda. “Alguns começam a ter sintomas depressivos, a ficar mais chorosos, desanimados, a se sentirem culpados. Outros já reagem com sintomas ansiosos, começam a ter taquicardia, dormir mal”, explica.
Crianças menores são ainda mais responsivas à somatização. Quanto menor a capacidade de verbalização da criança, maior a capacidade do corpo representar o sofrimento. Surgem as alergias, problemas alimentares, digestivos, dores de cabeça, problemas de pele. No caso de Luisa, apesar de acharem que ela tinha assimilado bem o processo, um tempo depois ela começou a reclamar de dor na barriga e ânsia de vômito de manhã. Ela também apresentou um afastamento do pai, principalmente após o período em que Rogério ficou mais de 20 dias internado para um transplante, sem ter contato com a filha que não fosse por Skype.
Os pais a levaram no pediatra e no gastroenterologista, que fizeram exames e não identificaram nenhum problema. A sugestão dos profissionais foi procurar ajuda psicológica. “Descobrimos que a dor realmente estava associada a esse lado emocional. A psicóloga também explicou que o afastamento era porque, de certa forma, ela tinha medo de perder o pai, dele sumir de novo”, diz Elaine. Depois que começou a fazer terapia nunca mais teve ânsias de vomito de manhã, nem dor de barriga. A terapia também proporcionou o retorno do relacionamento mais tranquilo com o pai.
Amadurecimento
No caso dos adolescentes, é interessante aproximá-los das várias etapas da doença. Acompanhar o familiar ao hospital, ao médico, conhecer o local onde recebem quimioterapia ou radioterapia. Isso ajuda a tirar muito dos fantasmas que criamos em torno da doença e humaniza o tratamento. Claro que eles podem ser protegidos de certos episódios, mas incluí-los nos cuidados e no tratamento é uma forma de ajudá-los a amadurecer. “Ainda temos uma postura antiquada de proteger tanto os filhos que os colocamos em uma redoma. Depois não sabemos porque tem tanta gente imatura por tanto tempo”, diz Armando.
Um episódio ilustra bem como a doença pode trazer um amadurecimento também para crianças menores. Certa vez a professora de artes da Luisa apareceu na escola careca, com lenço na cabeça. Como os coleguinhas acharam graça e faziam comentários, Luisa explicou que não era certo o que estavam fazendo, que às vezes a professora podia estar com um problema de saúde. Contou do seu pai, que fez tratamento, também perdeu os cabelos, e disse que eles voltariam a crescer. Não contente, foi perguntar à professora o motivo de estar sem cabelos, e descobriu que era em solidariedade à irmã, que tinha sido diagnosticada com câncer de mama. “Se não tivéssemos conversado com ela em casa, ela ia fazer piada como as outras crianças”, diz Elaine. O episódio também poderia ter sido pior, caso os pais não tivessem explicado antes e ela ouvisse dos colegas informações que não necessariamente correspondem à verdade. “Eu vejo que a melhor coisa foi contar. Se a criança não recebe respostas em casa, ela vai buscar na rua, e pode receber uma informação equivocada”, diz Rogério.
Armando conta que já viu várias histórias onde crianças pequenas demonstram uma maturidade surpreendente, conseguem ajudar os seus pais a enxergar o fio de esperança e acabam se tornando, de certa forma, cuidadores. “Existem crianças pequenas que assumem uma postura de acolhimento, compreensão, e isso independe da idade. Não subestime a capacidade dos filhos te amarem, porque isso não é mensurável”, diz.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.