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Os 10 anos da Lei dos 60 dias: os desafios do acesso à saúde para o paciente oncológico

Entre as muitas variáveis que fazem a diferença na vida do paciente oncológico, uma tem destaque especial: acesso. O acesso à saúde é o que configura a entrada do paciente para receber tudo o que necessita não apenas para o seu tratamento, mas durante todo o processo.

“Há desafios para superar em todos os elos dessa jornada”, alerta Tiago Farina Matos, ativista e consultor de Advocacy em saúde e conselheiro estratégico de Advocacy do Instituto Oncoguia.

“Precisamos pensar o acesso de forma ampla, a partir da conscientização com informações confiáveis para que as pessoas possam se prevenir e acompanhar a sua saúde, e assim garantir diagnósticos precoces, que aumentam as chances de cura do câncer”, avisa Ana Maria Drummond, diretora do Instituto Vencer o Câncer, ressaltando que essa é uma das missões da instituição.

Ela reforça a importância de garantir esse acesso em todas as fases, trazer o debate e levantar questionamentos, como a avaliação do que mudou e o que ainda falta avançar após uma década do que foi considerado um dos marcos para ampliar o acesso dos pacientes oncológicos ao Sistema Único de Saúde (SUS): a Lei dos 60 dias.

A lei 12.732/12 entrou em vigor em maio de 2013 e estabelece que todo paciente do SUS deve obter seu tratamento em até 60 dias a partir do diagnóstico.

Atestado da miserabilidade do sistema

“Essa lei é um atestado da miserabilidade do sistema”, afirma Tiago Matos. “Precisarmos de uma lei dizendo que o paciente deve ser atendido em 60 dias é a prova da falência do nosso sistema”.

Se de um lado, pondera o advogado, a lei empodera o paciente trazendo um instrumento jurídico para exigir seus direitos, por outro deve ser vista como uma meta, não é uma lei que faz as coisas saírem do papel imediatamente. “É uma ideia do que parece ser razoável. Para muitos casos, 60 dias nem é razoável – é muito tempo”, opina.

Ele chama atenção para um detalhe na lei que não é muito comentado: o fato de que ela prevê que o médico pode estabelecer um prazo menor de 60 dias para o início do tratamento, quando considerar que é importante para o paciente, desde que faça essa anotação no prontuário.

“O problema é estrutural, pelo fato de não ter uma boa rede de saúde, faltam médicos e serviços. Quando você não tem isso, não é uma lei dizendo que o paciente deve ser atendido em 60 dias que vai fazer mágica”.

A ideia é que, em um sistema eficiente, os pacientes seriam atendidos no tempo em que precisam para cuidar da sua saúde – e sem essa eficiência, a lei pode ser pouco efetiva e muitas vezes os pacientes precisam reivindicar, brigar para ter seu direito validado.

Paciente precisou exigir que seus direitos fossem cumpridos

Foi o que aconteceu com Anarita Moura dos Santos, que em janeiro de 2022, aos 54 anos, encontrou um nódulo suspeito quando fez ultrassom de mama. “Eu fazia exames anualmente. Sou enfermeira, falo muito sobre educação e saúde, sobre prevenir o que for possível prevenir. Tinha feito exame no final de 2020, estava tudo bem, 2021 foi um ano em que trabalhamos bastante, eu não fiz e fui fazer em janeiro de 2022”, recorda, lamentando ter deixado de fazer o exame em um ano na pandemia, mas sem perder o bom humor.

“Falei para o médico que fez o ultrassom: ‘Você é muito sem graça. Eu não vim aqui com esse intuito. Vim para bancar a bonita, só para dizer que faço’. Brinquei, mas fiquei muito sem chão, foi uma coisa terrível”.

Ela, que por sua atuação na saúde sabia que há muita inconsistência nos laudos, conta que sentiu na pele como paciente durante o processo de diagnóstico. O resultado da mamografia apontou BIRADS 2 (BIRADS é um sistema de padronização dos laudos em imagem da mama) e, do ultrassom, BIRADS 3. A aspiração por agulha fina (PAAF) confirmou a malignidade.

Com o resultado da biópsia, em meados de fevereiro de 2022, foi referenciada para a Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (CROSS) e aguardou mais de um mês para ter uma consulta em hospital público de referência – o que aconteceu em 22 de março.

“O médico falou que os laudos não estavam corretos, porque aquele nódulo não era um BIRADS 2 ou 3 e sim um 4 ou 5. Só que ele disse que não iria considerar aqueles exames e eu precisaria de uma nova biópsia”, conta Anarita. Foi informada pela recepcionista que só teria vaga para a próxima consulta em mais de 30 dias – e já haviam se passado mais de um mês desde o primeiro pedido do CROSS até a primeira consulta.

A paciente decidiu que precisaria tomar alguma atitude para não esperar todo esse tempo para começar seu tratamento. “Tem que fazer com muita educação, porque quem está na recepção não tem o poder de tomar decisão, mas tem que fazer, porque é a nossa vida. Eu pensei: ‘é a minha vida e eu não posso perder a minha vida’”.

Com base na Lei dos 60 dias ela fez uma notificação ao hospital para que se cumprisse o prazo estabelecido na legislação. “A partir dessa notificação tive meus direitos reconhecidos, tanto que no dia 23 de maio, período em que eu ainda estaria retornando no médico depois dos exames, internei para fazer cirurgia”, afirma.

“A partir daí tive meu tratamento todo em sequência conforme protocolo definido pelos médicos: fiz a cirurgia em 24 de maio, de 4 de julho a 20 de dezembro fiz quimioterapia e em 10 de janeiro de 2023 comecei a radioterapia.

Sigo em consultas médicas com oncologista e mastologista para rastreamento e cuidados. Embora tenha sido difícil, posso dizer que sou privilegiada, porque infelizmente nem todas pacientes têm seus direitos respeitados”.

Quanto caminhamos? E o quanto falta avançar?

Atuando há mais de 20 anos com advocacy, Tiago Matos acredita que houve avanços em termos normativos. “Não sei se podemos dizer que tivemos ganhos globais em termos de desfecho, porque, por exemplo, há diversas incorporações que são feitas no SUS, especialmente de antineoplásicos de tratamento sistêmico, que não chegam aos pacientes. É uma incorporação de faz de conta”, lamenta, acrescentando que em radioterapia houve algumas políticas, como plano de expansão, mas ainda está muito incipiente – e a quantidade de pacientes continua aumentando anualmente.

Ele cita que talvez o dado mais objetivo é um levantamento sobre a sustentabilidade do SUS que o TCU (Tribunal de Contas da União) fez em 2010 e refez em 2018, e que aponta piora nos resultados.

“Podemos ter alguns benefícios pontuais em termos globais sistêmicos, mas não acho que houve grandes melhoras. Por mais que tenha existido boa intenção nas ações, isso não se refletiu, a princípio, em um sistema de saúde que atende melhor às necessidades dos pacientes”, pontua.

“Temos as leis dos 60 dias, dos 30 dias, que dão mais empoderamento para o paciente, mas é algo individualizado, para quem tem acesso a isso. E não é dessa forma que queremos que o sistema funcione. Não queria que essa lei precisasse existir. Queremos que a pessoa tenha o diagnóstico e sua jornada flua dentro do sistema, sem precisar se estressar. O paciente já está debilitado, ainda precisa pegar uma lei e ficar levantando e gritando para exigir seus direitos. Isso é desumano”.

O advogado sugere que diante da realidade e muitas vezes difícil acesso, passando os momentos mais difíceis após o diagnóstico o paciente e familiares busquem se informar sobre seus direitos, em fontes confiáveis e procurem suporte em entidades que apoiam pacientes.

“O paciente não pode ser refém do sistema; o sistema tem que funcionar para ele. Ele não está pedindo um favor para ninguém ali”.


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