“Todos com quem converso tiveram dificuldades no diagnóstico”, revela paciente jovem. Ações de conscientização e prevenção podem mudar esse cenário.
“No Hospital Regional de Taubaté eu era a paciente de câncer de mama mais nova. Todos os médicos e os residentes vinham conversar comigo, saber meu histórico, o que fiz e o que não fiz”, conta Letícia Prates da Fonseca Bueno, que hoje tem 31 anos, mas descobriu o tumor aos 25 anos. Na época lhe disseram que não havia paciente em sua faixa etária na unidade – a mais nova depois dela tinha 39 anos. “Depois apareceram várias outras meninas mais novas, muitas entre 20 e 30 anos, até aparecer uma de 13 anos com câncer de mama”.
O câncer de mama é o tumor mais incidente em mulheres na maior parte do mundo; pelas estatísticas mundiais do Globocan 2018, são estimados 2,1 milhões de casos novos de câncer. No Brasil, para 2019, a estimativa é de 59.700 novos casos, representando quase 30% dos tumores em mulheres – excetuando-se o câncer de pele não melanoma.
Apesar da maior propensão da doença se desenvolver em mulheres com mais de 50 anos, a experiência vivenciada por Letícia, em ver aumentar a quantidade de mulheres mais novas e jovens com diagnóstico de câncer de mama, é uma realidade que se reflete nos números e confirma a percepção que os médicos têm em seus consultórios. “Historicamente a incidência de câncer de mama em mulheres com menos de 35 anos no Brasil ficava em torno de apenas 2% dos casos; hoje está entre 4% e 5% dos casos nessa faixa etária”, comenta Antônio Luiz Frasson, cirurgião de mama e mastologista, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia.
“Temos a percepção desse aumento em todo o Brasil e na América Latina. É um pouco diferente dos países europeus e dos Estados Unidos, onde não se vê essa diferença com tanta evidência”, avalia Frasson. “Fazemos suposições sobre os motivos de isso estar acontecendo, podendo ser devido às alterações no estilo de vida, mulheres tendo menos filhos, maior inserção no mercado de trabalho, gestações mais tardias, mudanças que acontecem em países em desenvolvimento, mas não se sabe exatamente porque”.
Não há ainda conclusões sobre os motivos do aumento da incidência de câncer de mama em mulheres jovens, por volta de 30 anos. À suposição de uma das razões ser devido a algo na dieta que podemos estar fazendo errado, o oncologista Antonio Buzaid, um dos membros fundadores do Instituto Vencer o Câncer, responde: “Provavelmente, sim”. Buzaid cita um grande estudo que sugere que a chamada dieta inflamatória – com muito refrigerante, carne vermelha, carboidratos e doces – aumenta o risco de câncer de mama em mulheres jovens. “Precisamos dar atenção à alimentação saudável. E ingerir bebida alcoólica também aumenta o risco desse tumor. Quanto mais se bebe, maior o risco”.
O mastologista Antônio Frasson avisa que o tratamento em pacientes mais novas pode ser diferente e há possibilidade de ter mais risco de histórico familiar associado. “Normalmente o tumor é mais agressivo em mulheres com menos de 35 anos e acaba necessitando de mais quimioterápicos, cirurgias maiores e chance de tumor na outra mama”.
Com esse aumento dos índices, ele acredita ser importante uma política de educação às mulheres mais jovens: “É preciso estarem atentas a pequenas mudanças que acontecem nas mamas e, caso percebam qualquer alteração mamária, devem procurar atendimento médico especializado”. Para mulheres que têm histórico familiar de câncer de mama, o médico avalia ser importante uma estratégia que garanta diagnóstico precoce: análise dos casos familiares, verificar se mãe, irmãs, tias tiveram tumor e com isso desenhar uma forma de atendimento direcionado.
Como é mais comum a incidência em mulheres mais velhas, um dos desafios é descobrir precocemente o tumor. “Todos com quem converso tiveram dificuldades no diagnóstico, porque os médicos não acreditam que uma pessoa jovem possa ter câncer de mama”, revela Letícia. “Precisamos superar a subvalorização de queixas das mulheres jovens. Não é proibido que uma mulher jovem tenha tumor de mama – pelo contrário; estamos tendo cada vez mais diagnósticos em mulheres jovens. As queixas devem ser consideradas pelos médicos, não podem ser subestimadas”, destaca Frasson. Para ampliar o conhecimento sobre o tema, o presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia afirma que a entidade vai lançar um alerta, junto com sociedades de ginecologia, apontando o aumento de diagnóstico em mulheres mais jovens e a importância de os médicos estarem atentos a esse fator.
Os desafios
Letícia experimentou na pele a dificuldade de confirmar seu diagnóstico. Quando sentiu uma bolinha na mama, no final de 2013, logo providenciou um pedido de ultrassom com uma conhecida e levou o resultado à sua ginecologista. “A médica achou graça uma menina de 25 anos fazer mamografia. Disse que era uma bolinha de cálcio e eu fiquei tranquila. Só que comecei a sentir dor, repuxava. Voltei para conversar com minha médica, que é minha ginecologista desde os 12 anos. Ela disse para eu relaxar, que estava encanada. Avisei a ela que não era encanação porque estava doendo e eu queria tirar”.
A bolinha tinha então o tamanho de uma ervilha. A cirurgia foi marcada para o dia 4 de fevereiro, para esperar passar a festa de casamento de sua amiga de infância, no dia 1º de fevereiro, na qual seria madrinha. “Eu senti que foi crescendo e no dia da cirurgia, pelo meu tato, estava do tamanho de uma azeitona. A médica disse que foi mais difícil de tirar do que imaginava e sangrou bastante”.
O material ainda passaria por exames para saber se era um tumor, mas como Letícia tinha acompanhado o câncer do seu pai, que teve diagnóstico cinco anos antes e estava recebendo alta, ela sabia o que estava acontecendo. Com o diagnóstico, começou o tratamento. Foi encaminhada ao mastologista e passou por quatro ciclos de quimioterapia. Os médicos tinham sugerido tirar dois quadrantes da mama. “Eu estava com medo de deixar algo. Pensei: não vai resolver nada meia mama. Fiz mastectomia radical. Como fiz cirurgia com bastante margem, não precisou de radioterapia”.
A jovem acabou o tratamento, a vida seguiu: em 2016 foi para a Índia, onde passou dois meses em um programa de empoderamento feminino. Voltou renovada, mudou sua forma de ver o mundo. Em fevereiro de 2017, divorciou-se. Em julho, descobriu que estava com recidiva. “Eu estava metastática, com recidiva nos linfonodos e osso do ilíaco”. Como mora em Pindamonhangaba e a situação era mais grave, decidiu fazer o tratamento em São Paulo.
Passou novamente por quimioterapia: mais quatro vermelhas e 16 brancas; fez 30 seções de radioterapia. O tratamento durou um ano e agora ela faz acompanhamento a cada três meses – toma remédio para os ossos, hormonioterapia e está em menopausa induzida.
Os exames demonstraram que o tumor dela não é hereditário. “Alguns médicos dizem que como é hormonal, pode ter sido pelo uso de anticoncepcional muito cedo. Eu sempre tive muita cólica, desmaiava todo mês na menstruação, vomitava muito e tinha que ir ao hospital tomar medicamento na veia. Quando estava com 17 anos e estudando para o vestibular, eu e minha mãe pensamos que não seria possível estudar o ano inteiro e correr o risco de ir parar no hospital no dia da prova. Decidimos e comecei a tomar anticoncepcional”, lembra. “Mas ninguém sabe ao certo o que tem acontecido para aumentar o câncer de mama em mulheres jovens. A alimentação hoje em dia é diferente, tem mais poluição; tudo isso se leva em consideração. O estilo de vida mudou muito, ficou muito inorgânico, muito industrializado e pode acabar interferindo. Mas o grande mistério, ninguém sabe. Desprende uma célula louca que resolve fazer um motim em todo o navio”, brinca.
A esperança
Como o pai tinha vencido um câncer e teve alta, Letícia encarou o primeiro tratamento bastante otimista e confiante. “Eu pensava: se meu pai passou, que é mais velhinho, eu sou nova, forte, vou passar por essa. Em nenhum momento pensei que morreria de câncer. Não aceitava isso”.
Quando aconteceu a recidiva, foi mais difícil, pois sabia o que tinha passado e o que a esperava. Revela que precisou de muito apoio da família e da equipe médica para ter coragem e recomeçar. E tem certeza de que a viagem para a Índia também ajudou a enfrentar o tratamento que foi, como ela diz, mais extenso, mais dolorido, mais demorado e sufocante. “Tudo pior. Fiquei muito debilitada”. Mas comemora que passou por tudo sem ter nenhuma reação adversa, nenhum resfriado.
E a perda de cabelo? Caiu, mas ela afirma que estar careca não era problema, pois sabia que era a única coisa de fato passageira – de todo o processo, era o que menos a preocupava. Não se adaptou ao uso de lenço, pois sentia que estava escondendo algo, reforçando a ideia da doença. A peruca também não funcionou. Então, saía careca. “As cirurgias, as mudanças de humor, as alterações no corpo, as cicatrizes. Tudo isso era muito mais assustador. Essas mudanças definitivas, de ter que conviver com uma nova realidade, é bem pior do que ficar careca. É diferente o sentimento e a relação entre o que é permanente e passageiro”.
Difícil também foi passar pelo processo sem encontrar pessoas da sua idade, com as mesmas perspectivas. “Encontramos muitos idosos em corredor do hospital, com a ideia de quem já criou filhos, netos, está em outro momento da vida. Eu descobri o câncer logo depois da faculdade, estava fazendo pós-graduação, entrando no mercado. Não é fácil ter que lidar com essa pane na decolagem. Só encontrei um jovem quando eu saía de um exame; eu tinha 28, ele 32 anos, com linfoma, estava no oitavo protocolo de quimioterapia. Ele me disse: ‘A gente tem que continuar. Importante que a gente está vivo’”.
Letícia conta que era esse tipo de mensagem que precisava, de pessoas da mesma faixa etária. Conseguiu em parte isso, tempos depois, quando uma jovem a colocou em um grupo de whatsapp de meninas com câncer: 20 jovens, de 23 a 37 anos, com histórias parecidas. “Eu sou a única metastática de lá. A única desse grupo que teve recidiva fui eu; nesse ponto, para mim ainda é solitário”. Por isso, pensa em fazer um projeto que fale de câncer e a juventude. “Há organizações que cuidam de crianças e adolescentes até 19 anos, e outros acima dos 40 anos, uma faixa de risco que já se sabe que é para ter atenção ao câncer. Dos 20 aos 40 anos não tem nada sobre isso”.
A quem enfrenta um diagnóstico de câncer na juventude, Letícia deixa seu recado: “Não se desespere. É uma notícia difícil, mas existem caminhos e hoje a ciência está bem avançada; já é possível viver e conviver com o câncer. Vai ser sempre um ciclo difícil, um período puxado, mas vai passar. Tudo passa, o que é bom e ruim. Tem que saber que vai entrar na tempestade, passar por turbulência, mas passa. Acreditar nos médicos, nos tratamentos, mas também acreditar na gente mesmo. E seguir a vida tentando não pensar tanto da doença. Depois que você cruza essa linha, com o diagnóstico, e você cruza uma linha, não tem mais como voltar. É uma preocupação de forma tão drástica que precisa ficar atento o tempo todo, com alimentação, atividade física. Eu chamo de TPP: tensão pré pet. A cada três meses eu faço pet e a vida vira uma montanha-russa. Por outro lado, se conseguir ver a beleza da vida que é o hoje, o agora — ao que passou e o que vai viver você não tem acesso –; se fizer o hoje bem feito, já é feliz. O presente é mesmo um presente. Às vezes a gente fica muito preocupado e tem gente mais saudável que acaba falecendo. A vida é louca, não dá para ficar esperando”.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.