“Por que eu devo fazer o teste genético, o que vai mudar?”. Essa é uma das perguntas mais comuns dos pacientes no consultório diante da indicação do médico para investigar se há alguma predisposição hereditária que aumente o risco de desenvolver alguns tipos de tumores. A resposta é abrangente e envolve diversos impactos, desde a compreensão da dimensão dos riscos até mesmo mudanças nas medidas de prevenção, rastreamento e em alguns casos tratamentos, além de envolver os familiares. Os casos hereditários representam de 10% a 15% de todos os tumores.
Se o paciente tem alguma alteração genética, pode acontecer de ter começado com ele, mas a oncologista clínica, especializada em oncogenética do Hospital Israelita Albert Einstein Letícia Taniwaki explica que isso é raro acontecer. “Geralmente a pessoa herdou do pai ou da mãe e então os irmãos e os filhos também podem ter”, diz. “Se uma alteração é detectada, será feito o rastreamento familiar pesquisando aquela alteração específica e todos terão a oportunidade de saber o risco de desenvolver um tumor para instituir medidas de prevenção e vigilância”.
Prevenção foi exatamente o que o teste genético possibilitou para Fabiana D’Alexandre Paolillo, 44 anos. Em junho de 2020, por questões de saúde, ela fez uma cirurgia bariátrica. Estava no processo de emagrecimento, tinha perdido 8 quilos, quando descobriu um carocinho na mama durante o autoexame. Como sempre acompanhou periodicamente com exames mensais, principalmente por ter histórico na família, ficou surpresa porque nunca teve nódulo.
O ginecologista pediu exames, ela foi também a uma mastologista, que solicitou uma punção. “Veio o diagnóstico de carcinoma e eu perdi o chão. Lembro que estava de plantão, trabalho à noite”, conta a paciente, que é enfermeira no Hospital Israelita Albert Einstein.
O diagnóstico chegou em outubro, mês em que completava um ano de casada. “O médico avisou que o tratamento seria longo, mas que havia uma grande chance de cura”.
Fabiana logo começou o tratamento com quimioterapia. Em uma das consultas o médico perguntou se havia casos de câncer na família. “Disse a ele que a família do meu pai toda morreu de câncer. Isso acendeu o alerta”, recorda.
Ela recebeu então orientação para fazer estudo genético e ver se havia risco de desenvolver outros tumores. Fez contato com familiares para descobrir o histórico da doença na família e realizou o teste genético. “Deu alteração indicando que poderia ter outros cânceres no futuro, principalmente ovário, trompas e útero. Como a chance para o útero é de 5% e eu não tenho filhos, o médico aconselhou a manter, porque eu posso mais tarde, se quiser, fazer fertilização”, afirma. “Eu tirei as duas mamas, coloquei extensor. Depois, quando retirei o extensor e coloquei próteses, já fiz laparoscopia para retirar ovários e trompas, agora em julho”.
Em recuperação da última cirurgia, Fabiana afirma que está aliviada por ter se livrado desse risco. “Graças a Deus estou livre do câncer. Fiz ressonância, não tenho mais nada, cura completa. Já parei a quimioterapia e estou com cabelinho nascendo de novo. Agora sigo fazendo acompanhamento. Estou curada”, comemora.
Orientada pela equipe médica, alertou os familiares sobre a importância de realizarem o exame para saber se também possuem a alteração genética. Cita o caso de uma prima que tem menos de 40 anos, teve um câncer semelhante ao dela na mama, tratou-se pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não fez o teste. “Ela tirou apenas um quadrante, ainda está em risco. A médica pediu para avisar meus primos, irmãos, os parentes mais próximos sobre os riscos. Conversei com todos”.
Painéis analisam vários genes
Apesar de muita gente só conhecer os genes BRCA1 e BRCA2 com risco aumentado para câncer de mama, que se popularizaram com o caso da atriz Angelina Jolie, Letícia afirma que desde os anos 1994-1995, quando foram sequenciados, muita coisa aconteceu. “Em 2013 teve o efeito Angelina Jolie, com um boom na oncogenética entre os pacientes, que começaram a se interessar e procurar esse atendimento. O custo foi diminuindo porque a técnica se aperfeiçoou, os testes baratearam e o acesso se expandiu”.
Atualmente as análises são feitas em painéis com a quantidade de genes variando de um para outro: um pode ser voltado a câncer de mama, por exemplo, outro avaliar a propensão para câncer colorretal ou um painel estendido que analisa vários genes para diversos tipos de tumores. A indicação do teste vai depender da história do paciente e da família.
Os valores, segundo Letícia, que há uns quatro a cinco anos ficavam em torno de R$ 5 mil, foram barateando e hoje é possível ter um bom painel por cerca de R$ 1,8 mil. “Um valor bem mais acessível, mas não acessível a toda população. No sistema suplementar tem o teste, mas precisa seguir o rol da ANS (Agência Nacional de Saúde), com critérios menos abrangentes que os protocolos internacionais. Quando o paciente atende aos critérios, consegue fazer a investigação pelo plano de saúde. O SUS infelizmente ainda não tem esses testes disponíveis. Nesses casos, a definição do rastreamento se baseia na história clínica do paciente, considerando quando tem tumor muito jovem, com história familiar, quando a avaliação clínica apresenta algo importante”.
O que muda com o teste genético
Como o teste genético de predisposição hereditária pode apontar uma alteração que aumente o risco de câncer, possibilita ajudar o paciente a entender o motivo do desenvolvimento do tumor. “Muitas vezes a angústia do paciente é saber o porquê daquele tumor, ele quer entender o que fez de errado ou o que ocorreu. O teste pode explicar em parte ou em grande parte”, acrescenta a oncologista.
Outro benefício de ter essa informação é que algumas alterações podem estar associadas a mais de um tipo de tumor. Letícia cita o exemplo do BRCA2, que além do câncer de mama, também aumenta o risco para câncer de ovário, um pouco menos para câncer de próstata e de pâncreas. Se o exame detectar uma alteração, o médico pode tomar decisões com base no risco aumentado. “Estando em risco conseguimos desenhar um protocolo de rastreamento e caso a pessoa venha a desenvolver um tumor, há mais chance de detectar em estágio inicial. Quanto mais precoce o diagnóstico, mais simples o tratamento, menos invasivo e maior a chance de cura”, destaca.
Há ainda situações em que é possível fazer medidas de prevenção, como no caso das alterações que aumentam significativamente o risco de desenvolver câncer de mama. A oncologista avisa que nem todo caso necessitará de cirurgia para retirada das mamas preventivamente, mas é uma alternativa. Por outro lado, afirma, os exames de rastreamento para câncer de ovário disponíveis não são tão bons quanto para mama, e mesmo com rastreamento o diagnóstico pode ser feito em estágio avançado. “Dependendo da alteração, da idade da paciente e do risco, se for alto, recomenda-se uma cirurgia preventiva de retirada do ovário”.
Há ainda síndromes que influenciam o aparecimento do câncer de intestino. “Elas aumentam o risco de desenvolvimento de pólipos intestinais. Quando há a síndrome, fazemos a colonoscopia em idade mais jovem e com mais frequência. Se esses pólipos começam a se desenvolver em velocidade e intensidade que passam a não ser manejadas pela colonoscopia, com a retirada das lesões que podem vir a se desenvolver, pode ter a recomendação de fazer colectomia/proctocolectomia profilática (como nos casos da Polipose Adenomatosa Familiar). O momento dessa cirurgia preventiva é bem discutível. Antes era feito logo ao diagnóstico da síndrome, às vezes até em crianças, mas cada vez mais tem se postergando pela “janela de oportunidade” oferecida pelas colonoscopias precoces e manejo dos pólipos até a faixa dos 18 anos”.
Com exceção dos casos em que há indicação cirúrgica preventiva, a maioria dos resultados vai impactar principalmente a vigilância e o rastreamento precoce. No caso do câncer de intestino, o risco de desenvolver o tumor aumenta com a idade na população em geral e por isso é recomendado que a partir dos 45-50 anos seja realizada colonoscopia e, dependendo dos resultados, refazer a cada 1 ano, 3 anos, 5 anos ou até 10 anos, se estiver normal. Para os pacientes com síndrome que aumenta o risco, esse rastreamento será antecipado, com colonoscopia a partir dos 20-25 anos e repetindo a cada 1-2 anos.
A oncologista enumera outras cirurgias redutoras de risco: gastrectomia profilática (existe uma síndrome específica que aumenta bastante o risco de câncer de estômago chamada Câncer Gástrico Difuso Hereditário), histerectomia profilática (pode ser discutida e considerada em algumas síndromes que aumentam significativamente o risco de câncer de endométrio a depender do risco, história familiar, idade, prole constituída, comorbidades).
Letícia cita ainda o exemplo dos tumores do sistema nervoso central, em que normalmente não é feito exame para rastrear a população em geral, mas se há alguma alteração genética que indique um risco muito alto, é realizada ressonância de crânio.
O resultado do teste genético também pode influenciar o tratamento. A oncologista chama atenção ao fato de que não são todas as alterações que terão impacto no tratamento, mas para algumas variantes, dependendo da alteração e do tipo e estágio da doença, pode ampliar as opções. Há casos de pacientes, especialmente com tumores de mama, ovário e pâncreas, com uma alteração específica hereditária, que podem se beneficiar da terapia-alvo, uma terapia de precisão.
O que chama atenção
Há algumas situações que chamam atenção e despertam a suspeita de que pode haver alguma alteração genética que aumente o risco de câncer, como alguns tipos específicos de tumores que se desenvolvem em idade mais jovem. Outros fatores são a história familiar e múltiplos tumores em um único paciente. “Muitos pacientes chegam porque têm diversos familiares com história de câncer. Preocupados, já vêm com a ideia de instituir medidas de prevenção e rastreamento”, comenta a especialista.
“Hoje em dia qualquer paciente com adenocarcinoma de pâncreas já é recomendado que se faça uma investigação. É uma recomendação nova e vemos que muitos pacientes não fazem”, informa, complementando que nesses casos o plano de saúde cobre segundo critérios estipulados no rol da ANS, que exige que tenha também história familiar. “Mas a recomendação hoje é que se faça em todos os casos”.
Como agir quando não é possível fazer o exame
Há situações em que o médico observa detalhes importantes bastante sugestivos de uma síndrome hereditária, analisando a história pessoal e familiar do paciente. Quando isso acontece e o paciente não pode fazer o exame, seja porque não tem plano de saúde, o plano não cobre ou não tem condições financeiras de pagar para confirmar, Letícia explica que o médico irá atuar como se houvesse a alteração, orientando a fazer o rastreamento como se estivesse no protocolo de alto risco. “Quando for muito sugestivo, o rastreamento é feito partindo do pressuposto de que é grande a chance de ter alteração”.
Medos e dúvidas
A oncologista conta que um medo bastante comum nos pacientes que hesitam em fazer o teste é por achar que a alteração é uma sentença de que a pessoa terá câncer. “Não é isso. É um aumento de risco de desenvolver determinado tumor em comparação com a população em geral. O aumento pode ser pouco, médio, muito, mas não é uma certeza”.
Alguns apresentam índices maiores, como o BRCA1 e BRCA2, que aumentam o risco de câncer de mama em média 70%. A síndrome de Lynch aumenta o risco de câncer colorretal, de endométrio e outros tumores. “Para colorretal, por exemplo, aumenta em média 40% e dependendo do estudo varia, chega a 80%. Mas esses estudos tinham mais histórico familiar”.
Ela cita também a síndrome de Li-Fraumeni, que tem risco avançado de vários tipos de tumores. “Chega 50% até os 40 anos e quase 90% até os 60 anos o risco de desenvolver alguns tumores, como mama em idade mais precoce, sarcoma tanto ósseo quanto de partes moles, tumores do sistema nervoso central, leucemia, tumores na infância. Por isso o protocolo de tratamento dessa síndrome é mais intenso”.
Futuro promissor
“Cada vez mais são descobertas novas alterações associadas a tumores. Muitas vezes vemos pacientes com história familiar importante, que fazem teste amplo e não detectam alterações, mas sabemos pela história que está acontecendo alguma coisa, só não se sabe ainda o que. Estamos no caminho de descobrir outras alterações associadas a risco de tumores e há avanços nas medicações tentando ter como alvo essas alterações nos genes”, conclui Letícia.
O Instituto Vencer o Câncer é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundada pelos oncologistas Dr. Antonio Carlos Buzaid e Dr. Fernando Cotait Maluf, com atuação em 3 pilares: (1) Informação de excelência e educação para prevenção do câncer. (2) Implementação de centros de pesquisa clínica para a descoberta de novos medicamentos. (3) Articulação para promoção de políticas públicas em prol da melhoria e ampliação do acesso à prevenção, ao tratamento e à cura do câncer.