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Desafios de uma paciente para ter diagnóstico de câncer de ovário, fim da fertilidade e o que é preciso saber sobre a doença

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“Eu queria ter mais filhos; ficava adiando e agora estou estéril”, lamenta Telma Sampaio de Oliveira, 44 anos, que tem uma filha de 17 anos e passou por uma jornada difícil para conseguir seu diagnóstico de câncer de ovário. “Até hoje fico pensando qual foi o exato momento em que descobri o câncer”.

O tumor, que acomete cerca de 6.600 mulheres por ano no Brasil, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), é o quinto mais letal no público feminino, justamente pela dificuldade em se obter um diagnóstico. Ocorre principalmente em mulheres acima de 40 – 50 anos, sendo mais comum a partir dos 60 anos. Mas há casos em que aparece de forma precoce, geralmente com maior chance de cura. Além da idade, são fatores de risco histórico familiar de câncer de mama ou ovário e câncer de mama anterior, obesidade, sedentarismo e o tipo de dieta, entre outros. Saiba mais sobre os fatores de risco.

“Estima-se que uma em cada 78 mulheres vai desenvolver esse tipo de câncer”, explica o oncologista Fernando Maluf, um dos fundadores do Instituto Vencer o Câncer. “De cada dez mulheres diagnosticadas, oito têm o diagnóstico em fase avançada”.

Foi justamente o que aconteceu com Telma, que em abril de 2018 sentia dores na pelve e estava com a barriga inchada. “Em janeiro eu fiz todos os exames de rotina e não apareceu nada errado. Com as dores, voltei ao ginecologista e repeti os exames. O médico que fez o ultrassom transvaginal falou que tinha um ‘cistão’ e eu não deveria demorar para ir ao médico”. Era um cisto de 12 cm e meio litro de líquido. Em julho, durante cirurgia para retirada do ovário, o cisto rompeu. “A médica disse que tinha uma espécie de muco, que se espalhou por todo abdômen e tiveram que tirar meus órgãos para limpar”.

A biópsia não identificou tumor e 15 dias depois ela voltou às atividades normais. Entretanto, a dor não passava; pelo contrário: ficava mais forte e a barriga voltou a inchar. O ginecologista disse que eram gases.  Em setembro, dois meses após a cirurgia, foi ao pronto-socorro e na consulta o médico estranhou quando examinou sua barriga, pediu ultrassom de abdômen total, que apontou um cisto no outro ovário, de 14 cm e quase 600 ml de líquido. “Dei muita sorte porque estava de plantão a mesma equipe que tinha me operado; já fiquei internada para fazer cirurgia de urgência”. Nova cirurgia, retirada do outro ovário, e novamente resultado negativo na biópsia. “Hoje vejo que deveriam ter pedido exame imuno-histoquímico”, opina Telma.

 

Ainda não há exames para diagnóstico precoce

Maluf afirma que, infelizmente, não há exame preventivo para diagnóstico precoce de câncer de ovário, como é o caso do Papanicolaou para o tumor do colo uterino. “O diagnóstico baseia-se muito nos sintomas e a doença precoce geralmente é assintomática. Quando os sintomas aparecem, costuma estar avançada, que é quando atinge o peritônio, membrana que reveste os órgãos abdominais”.

O oncologista ressalta que nesses casos a barriga fica maior por acúmulo de líquido, mudam os hábitos intestinais e às vezes também a urina, além de poder haver sangramento vaginal. “Se a barriga continua crescendo e a dor é persistente, os sintomas começam a não flutuar e piora a cada dia é porque algo está errado. A doença pode se expandir para os pulmões e pleuras, causando falta de ar”.

Apesar do câncer de ovário aparecer na ultrassonografia, o médico comenta que foram feitos diversos estudos com mais de 30 mil mulheres utilizando ultrassom e exame de sangue com marcador CA 125 e a conclusão foi que a realização desses procedimentos em mulheres saudáveis não conseguiu diagnosticar precocemente nem reduzir a mortalidade.

“O mundo inteiro tem estudado vários tipos de exame, principalmente sanguíneo, para tentar identificar proteínas e antecipar o diagnóstico”, esclarece. “Essa é uma área em que a Medicina precisa avançar rapidamente para salvar vidas, antecipando mulheres que têm alguma coisa ainda muito pequena, passível de cura”.

Veja nesse texto mais sobre diagnóstico e exames que podem ajudar a avaliar a extensão da enfermidade, como dosagem da proteína CA 125, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética.

 

Diagnóstico chega com doença avançada

Tinham se passado meses desde a última cirurgia e Telma ainda sentia incômodo – achava que se devia aos dois procedimentos grandes para tirar os cistos. Começou a sentir dores em outras partes da barriga e desconfiar que havia algo além do processo de recuperação. “Parecia que eu sentava em cima de uma bola. Consultei com hematologista, ginecologista, clínico geral, urologista, proctologista e todos diziam que era por causa da cirurgia”.

Seguiu tentando descobrir a origem dos sintomas até que uma gastroenterologista pediu endoscopia e tomografia de abdômen total. Em janeiro de 2020 o resultado demonstrou que vários órgãos estavam comprometidos: tinha lesão no fígado, útero, estômago, bexiga, peritônio e pulmão. A médica pediu marcadores tumorais, ressonância e a encaminhou para um cirurgião geral. Uma revisão das lâminas das biópsias com imuno-histoquímico comprovou que era adenocarcinoma de ovário e Telma foi encaminhada a um cirurgião oncológico. “Começou a minha corrida contra o tempo”.

 

Cirurgia de 12 horas e retirada de vários órgãos

Com o isolamento decretado por conta da pandemia, teve dificuldade para marcar a cirurgia, que só foi realizada em junho. “Durou 12 horas. Retiraram meu útero, baço, apêndice, vesícula, um pedaço do estômago e do fígado, parte do meu diafragma e do peritônio. Durante a cirurgia tive derrame pleural e fui direto para a UTI, onde fiquei dois dias. Quando passei para o quarto, em menos de 24 horas tive embolia pulmonar. Só não morri porque não era o dia e porque estava cheia de drenos, o que ajudou a evitar que o êmbolo fechasse o pulmão. Conseguiram controlar a embolia e fiquei tomando injeções na barriga. Fui me recuperando rápido das intercorrências. Tudo aconteceu em nove dias”.

 

Importante saber

Fernando Maluf destaca que toda mulher que recebe diagnóstico de câncer de ovário deve ser avaliada para saber se o tumor foi induzido por alguma anomalia de um gene – os mais comuns são BRCA1 e BRCA2 -, já que de cada dez pacientes da doença, duas são devido a alterações em um destes dois tipos. “É importante saber, para um acompanhamento diferente e avaliar familiares, principalmente filhos e filhas, irmãos e irmãs, que deverão ter um seguimento diferenciado para antecipar o problema e evitar algo grave no futuro”.

Quando há a síndrome genética BRCA1 ou BRCA2 deve-se considerar a realização de uma cirurgia profilática, a retirada do órgão saudável para evitar o desenvolvimento do tumor. Maluf explica: “O BRCA é um gene que todos nós temos, homens e mulheres, e atua como guardião da integridade do organismo. Se está mutado, perde sua função de proteção e aumenta a chance de desenvolver alguns tipos de câncer – não todos. No câncer de mama aumenta de 70% a 80% para quem tem a mutação do BRCA1 e 50% a 60% em pacientes com BRCA2. Para o câncer de ovário, com BRCA1 o aumento é de 35% a 70% e BRCA2, 15% a 30%. De cada três mulheres com mutação, uma ou duas desenvolverão a doença”. Para quem tem a síndrome, a recomendação médica é realizar cirurgia profilática das trompas e ovários depois que a mulher teve os filhos que desejava.

Mulheres sem mutação mas que já tiveram câncer de mama ou têm histórico de tumor de ovário na família possuem risco um pouco maior se comparado com as que não têm histórico – e menor do que o provocado pela síndrome genética. Nesses casos, informa o oncologista, o que se recomenda é quando chegar na menopausa, como o ovário perde sua função, fazer a remoção de ovários e trompas. “É uma cirurgia simples, feita por laparoscopia ou robótica, demora minutos. A cirurgia não é recomendável para pacientes que ainda têm produção de hormônios, pois irá impactar na qualidade de vida sem ganho muito óbvio”.

 

Tratamentos e preservação da fertilidade

Nos 20% dos casos em que a mulher é diagnosticada precocemente, o tratamento é feito, em geral, com uma cirurgia minimamente invasiva e muitas vezes é possível preservar um dos ovários. Segundo Maluf, alguns casos precisam de complementação quimioterápica e a curabilidade é acima de 80%.

Para a maioria das pacientes, com diagnóstico avançado, a cirurgia geralmente envolve remoção de ovários, útero e em algumas situações também dos gânglios, de lesões peritoniais e em outros órgãos. “São cirurgias grandes, que devem ser feitas por cirurgiões bastante experientes que atuam em grandes centros de saúde”, alerta. “Quando ainda há o sonho de gravidez, é importante uma conversa franca entre o médico, a paciente e toda família para entender o contexto e fazer com que o sonho de fertilidade se realize. Existem tratamentos que preservam a função ovariana, por exemplo, evitando operar o ovário saudável, além das opções de coleta de óvulos e embriões”.

Em algumas situações, pelo volume da doença não é possível fazer a cirurgia como primeiro tratamento, porque o tumor está em locais de difícil operabilidade; nesses casos é feito primeiro a quimioterapia, para reduzir o volume. “Alguns estudos sugerem que para casos específicos, no momento do ato cirúrgico pode se realizar tratamento quimioterápico dentro do abdômen, em altas temperaturas, chamado quimioterapia intraperitoneal hipertérmica”. Depois da cirurgia pode ser preciso tratamento quimioterápico para reduzir ou erradicar pontos que não foram visíveis pelo cirurgião.

Foi o que aconteceu com Telma. Em agosto de 2020 começou a fazer seis ciclos de quimioterapia, tratamento que continuou até dezembro. Ela recorda que foi difícil, teve queda de cabelo, ficava fraca e acamada. O tratamento diminuiu um pouco as lesões e manteve o controle da doença.

 

Medicamentos que podem ajudar

Além da cirurgia e quimioterapia, há situações em que se aloca um segundo tipo de agente durante o tratamento quimioterápico: remédios antiangiogênicos, que bloqueiam as formações dos vasos do tumor, evitando que ele receba oxigênio e alimentos, em uma conjunção de tratamento medicamentoso feito durante ou depois da quimioterapia.

Após o tratamento quimioterápico, avisa Maluf, em algumas situações é realizada a manutenção com drogas chamadas inibidores de PARP, para evitar que o tumor volte à sua integridade. “São drogas que têm importante ação em pacientes com mutação BRCA1 e BRCA2, mas também podem funcionar, numa proporção menor, com outros tipos de alterações ou em pacientes sem alteração gênica. Estamos avançando nos melhores resultados e hoje o número de pacientes em remissão completa da doença ou no controle prolongado é muito maior do que no passado”.

Saiba mais sobre tratamentos.

 

Vida com qualidade e repleta de sonhos

Em março deste ano Telma começou um novo protocolo de quimioterapia. “A oncologista avisou que não tem mais objetivo de cura, é apenas para controle, mas consegue me manter com qualidade de vida por tempo indeterminado. Não sinto dor, não tenho sintomas, estou bem e tenho muita qualidade de vida”, comemora.

“Vejo que tudo é aprendizado e tem um propósito para nossa evolução. Há pessoas que me perguntam se isso não é rancor ou mágoa que eu guardei. Pior quando pedem para fazer uma análise interna e ver como está minha relação com Deus. A doença não tem nada a ver com fé”, desabafa, e conta com bom humor como sua fé permite que possa desejar sonhos futuros. “Fui fazer exame médico de renovação da CNH, o médico perguntou sobre tratamento de saúde, falei da quimioterapia e ele pediu um breve relato. A renovação tem prazo de validade de dez anos, mas ele disse que diante do meu problema de saúde a minha será de cinco anos”, Telma gargalha enquanto conta a história. “Logo falei: ‘ô Senhor, dai-me forças para estar aqui daqui a cinco anos e fazer a renovação’”.

Ela busca levar assim, de forma leve e com bom humor, sua relação com a doença. Hoje tenta trabalhar menos e aproveitar mais a vida. “Tenho um ditado que digo sempre: quem vê cara, não vê exame. Quem olha para mim não acredita tudo que passei. Não me sinto doente. Meu médico fala que trata minha doença como crônica; foi-se o tempo em que o câncer era uma sentença de morte. Claro que posso ter complicação a qualquer momento, mas tudo é relativo e por isso entrego na mão de Deus e confio que está numa boa mão. E tudo que o médico fala para fazer, eu faço”.

Conta que nunca se revoltou, é bastante positiva, mas às vezes sente desespero, quando pensa no que já passou e no que ainda vai passar. “Choro. Sou humana. Mas não me entrego, trabalho, faço minhas coisas, não reclamo nem deixo a doença ser protagonista da situação. Ela está no meio da história, mas não é ela que prevalece”.

A entrevista aconteceu dias antes de Telma viajar para Arraial do Cabo – e por várias vezes ela contou animada o que considera uma “aventura”, que preparou com todo cuidado de isolamento por conta da pandemia. “Diante da minha situação, não quero perder tempo. Vejo que evoluí muito no autoconhecimento e na autoestima. Quando o cabelo caiu, senti que eu estava desintegrando, literalmente caindo aos pedaços. Você vê que depois o cabelo vai se regenerando, como nós. Antes eu só pensava em trabalhar; hoje quero viajar, conhecer lugares, ter uma vida mais tranquila. Ver minha filha se formar e ter um netinho. Não poderei mais ter filhos, como queria, então vou esperar os netos. Ela já avisou que nem tão cedo, acabou de entrar na faculdade. Será que vou abraçar meu netinho?”, pergunta, e logo sorri, voltando a falar dos planos de viagens. “Esse é o primeiro de uma lista de lugares que quero ir quando a pandemia acabar. É o pontapé inicial”.

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