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O avanço constante da oncologia requer a descoberta e o desenvolvimento de novos medicamentos e de novas aplicações para os medicamentos existentes. Antes que um novo medicamento possa ser administrado a pacientes com câncer, é necessário que sua segurança e eficácia sejam avaliadas em estudos científicos.

Esses estudos são de vários tipos e, comumente, deitos de maneira sequencial, conforme ilustra o diagrama a seguir.

Fases da pesquisa científica sobre novos medicamentos.

Fases da pesquisa científica sobre novos medicamentos.

No diagrama, são exemplificados os diversos tipos de estudos que compõem as chamadas “fases da pesquisa”. Existe uma fase que ainda não envolve seres humanos: é a fase pré-clínica, durante a qual são feitos experimentos laboratoriais. Esses experimentos são feitos para mimetizar o que irá ocorrer quando o novo medicamento for administrado em pacientes com câncer para diminuir possíveis efeitos colaterais. Para isso, usam-se células normais e tumorais, bem como animais de laboratório, tais como camundongos, ratos, cachorros e macacos. Além disso, também são feitos testes químicos e bioquímicos, para avaliar a estrutura, o mecanismo de ação e os efeitos do medicamento em estudo.

Nem todos os medicamentos promissores passam da fase pré-clínica, pois alguns não demonstram evidências da atividade terapêutica desejada e outros causam toxicidade elevada. Em geral, a fase pré-clínica dos medicamentos ocorre no âmbito universitário ou de indústrias farmacêuticas e é realizada por pesquisadores com formação diversa, incluindo químicos, físicos, farmacologistas e médicos.

Finalizados os testes pré-clínicos, um novo medicamento que demonstra evidências da atividade terapêutica desejada e grau de toxicidade aceitável é levado para a fase clínica de desenvolvimento, que envolve indivíduos saudáveis e pacientes com a doença ou condição clínica para a qual o medicamento poderá ser útil. A fase clínica é comumente feita com apoio da indústria farmacêutica ou de biotecnologia, muito embora dela ainda participem pesquisadores universitários, estatísticos e outros profissionais com interesse em pesquisa. A pesquisa clínica também é divida em fases, conforme mostrado a seguir e discutido nos tópicos mais adiante.

Fases da pesquisa clínica.

Fases da pesquisa clínica.

Aspectos éticos e científicos da pesquisa clínica

Infelizmente, é comum que os meios de comunicação usem o termo “cobaia” para se referir a pacientes que participam de estudos clínicos. Cobaias são animais de laboratório essenciais para algumas das etapas do desenvolvimento de um novo medicamento. Esses animais não estão doentes e não podem tomar decisões.

Pacientes com câncer que optam por participar de estudos clínicos são seres humanos dotados de discernimento e capazes de decidir se querem ou não submeter-se a um tratamento experimental para sua doença. Muitos desses pacientes podem, inclusive, não alcançar nenhum benefício pela participação no estudo, mas certamente estão contribuindo para o avanço da ciência e para melhorias no tratamento de pessoas que, no futuro, estarão em situação semelhante.

Além disso, muitas vezes a participação no estudo clínico pode abrir perspectivas para o próprio indivíduo, uma vez que novos tratamentos podem representar grandes avanços em casos para os quais ainda não havia medicamentos eficazes. Isso vem sendo cada vez mais frequente com os medicamentos contemporâneos contra o câncer.

Assim como em diversos países do mundo, a pesquisa clínica é uma atividade bastante regulamentada no Brasil. Desde 1996, existe uma série de normas oficiais, definidas em âmbito federal, que têm por objetivo garantir a segurança das pessoas que participam dos estudos clínicos, os chamados “sujeitos de pesquisa”. Essas normas, que seguem princípios internacionais de ética em pesquisa, procuram assegurar aos sujeitos de pesquisa seu direito de participar de maneira voluntária, de receber toda informação que julgarem necessária e de que seus dados sejam tratados de maneira confidencial.

Para isso, as normas vigentes exigem que todo projeto de pesquisa seja aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa, ou CEP, e que todos os sujeitos de pesquisa assinem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou TCLE. Esse documento deve explicar o estudo passo a passo, os potenciais riscos e benefícios da participação, as alternativas existentes e diversos outros aspectos essenciais para que o paciente possa tomar uma decisão racional e objetiva a respeito de participar ou não do estudo. Se o paciente se recusar a participar, seu tratamento deve seguir da maneira habitual, sem que isso influencie o relacionamento entre ele e o médico ou equipe de saúde.

Segundo as normas vigentes, somente a maioridade legal garante a uma pessoa a autonomia para participar de um estudo clínico. Entretanto, há estudos realizados com crianças e adolescentes, além de estudos feitos com pacientes sem condições médicas para assinar o TCLE. No caso de menores, quem deve assinar o TCLE são os pais ou o responsável legal, e, muitas vezes, a criança ou adolescente também deve concordar em participar. Da mesma forma, pacientes sem condições médicas para assinar o TCLE, tais como aqueles internados em UTI, podem participar de estudos clínicos quando o responsável legal assinar. Nesses casos, o consentimento deve ser renovado quando o paciente novamente estiver em condições de fazê-lo. Quando o paciente é analfabeto, seu consentimento pode ser obtido pela assinatura de uma testemunha, devendo o paciente endossar o TCLE com sua impressão digital.

A empresa, organização de saúde ou indivíduo responsável pelo estudo é o seu patrocinador. Perante a lei, o patrocinador tem a responsabilidade de conduzir o estudo de maneira adequada, tanto do ponto de vista ético quanto científico. Ao convidar pesquisadores para participar do estudo, o patrocinador estende a eles essa responsabilidade; a mesma regra vale para o caso das empresas que auxiliam o patrocinador em diversas etapas do processo de pesquisa.

Como se dá a participação do paciente no estudo?

Independentemente da fase da pesquisa clínica, a participação no estudo segue uma série de etapas previsíveis. Inicialmente, o paciente é convidado a participar por seu médico ou equipe de saúde, por apresentar uma doença ou condição clínica que está sendo avaliada no estudo. O paciente que se mostra interessado em participar recebe uma série de informações a respeito do estudo, juntamente com o TCLE. Depois de compreender o TCLE e esclarecer as eventuais dúvidas, o paciente pode assinar o termo, confirmando sua compreensão a respeito do estudo e seu desejo de participar. A seguir, pode ser necessário que o paciente se submeta a alguns exames ou avaliações para confirmar sua elegibilidade, ou seja, garantir que todas as condições estão presentes, conforme requer o protocolo do estudo.

Fluxo do paciente pelo estudo.

Fluxo do paciente pelo estudo.

Confirmando-se a elegibilidade, é iniciado o tratamento em estudo, que é feito de acordo com as determinações do protocolo. Em geral, o tratamento em estudo continua enquanto houver algum benefício para o paciente e desde que não haja efeitos colaterais com intensidade acima do aceitável. Durante o estudo, os dados colhidos são registrados na chamada “ficha clínica”, que é o instrumento usado para coleta e armazenamento das informações pertinentes ao estudo. Ao término do estudo, os dados de cada paciente serão estatisticamente analisados de maneira coletiva, sem que o indivíduo seja identificado. O objetivo final é avaliar o resultado, o que permite aos pesquisadores julgar se o novo tratamento deve ou não seguir em frente nas fases da pesquisa clínica, vistas a seguir.

  • Fase I

A fase I é comumente realizada em indivíduos saudáveis, muito embora a oncologia represente uma exceção, já que seus estudos de fase I costumam envolver somente pacientes com câncer (exceto no caso de alguns medicamentos). Em geral, os estudos de fase I são feitos nos países em que se encontra a matriz das empresas envolvidas no desenvolvimento do novo medicamento, sendo esses estudos realizados apenas ocasionalmente no Brasil.

O objetivo de um estudo de fase I é verificar se um medicamento promissor na fase pré-clínica é tolerável pelo ser humano e definir a dose ideal para melhor avaliar a eficácia (fase II) do novo medicamento.

Em alguns estudos de fase I, também são feitas análises farmacocinéticas, que permitem avaliar como o medicamento é absorvido, metabolizado e eliminado pelo organismo.

No caso da oncologia, os pacientes que participam de um estudo de fase I apresentam diferentes tipos de câncer, frequentemente em fase avançada e para o qual podem não mais existir tratamentos com eficácia comprovada.

Na prática, um estudo de fase I consiste na administração de doses progressivamente maiores do medicamento em questão a pequenos grupos de pacientes que vão sendo recrutados conforme avança o estudo e de acordo com a ocorrência de efeitos colaterais. Assim que se julga que uma determinada dose do medicamento está próxima de um nível inaceitável de toxicidade, o estudo é interrompido. Nesse momento, os pesquisadores decidem se o medicamento deve ou não ir para a fase II.

  • Fase II

Uma vez que se demonstra que um novo medicamento ou combinação apresenta perfil de efeitos colaterais dentro de limites aceitáveis, e desde que haja expectativa razoável de atividade contra o câncer, o desenvolvimento prossegue para a fase II. Nessa fase, o tratamento será avaliado em grupo maior de indivíduos, habitualmente com a mesma doença, para a qual pode ou não haver tratamentos com eficácia comprovada.

Um estudo de fase II consiste na administração do tratamento a um número predefinido de pacientes. Assim que se chega a esse número, determina-se o grau de atividade do medicamento em estudo, juntamente com a frequência e a intensidade dos efeitos colaterais. Baseado na eficácia do novo medicamento, o patrocinador do estudo julga se o medicamento deve ou não ir para a fase III.

  • Fase III

Os estudos de fase III costumam envolver centenas e, em alguns casos, até milhares de indivíduos com a doença em questão. Para que se consiga esse grande número de pacientes, os estudos de fase III são, em geral, realizados em vários centros de pesquisa de diversos países.

Alguns estudos de fase III podem levar vários anos até que sejam concluídos. Nem sempre os pacientes que participam de estudos de fase III apresentam câncer em fase avançada, já que existem estudos de fase III sobre novas formas de tratamento adjuvante, isto é, tratamento dado de modo a prevenir recidivas.

O principal objetivo de um estudo de fase III é comparar um novo tratamento com algum tratamento já existente, no intuito de melhorar ainda mais o cenário terapêutico para os pacientes. Essa comparação é feita porque os pacientes que participam de um estudo de fase III são randomizados. A randomização, que consiste num sorteio feito pelo computador, tem por objetivo dividir os pacientes em dois ou mais grupos, que serão comparados ao final do estudo. A randomização só é feita quando não se sabe se um tratamento é melhor que outro, sendo o estudo desenhado justamente para responder a essa pergunta.

Ao final dessa fase da pesquisa clínica, pode haver evidência suficiente para registro do novo tratamento nas agências regulatórias, como a ANVISA no Brasil e a agência norte-americana FDA (Food and Drug Administration).

Havendo registro nas agências regulatórias, o medicamento pode ser comercializado no país em questão, muito embora possa haver detalhes relativos à indicação para a qual foi aprovada a comercialização. Essa mesma indicação pode influenciar a disponibilidade do medicamento na rede pública de tratamento e o reembolso por parte de planos de saúde e outras fontes financiadoras da saúde suplementar.

  • Fase IV

Quando os estudos clínicos são finalizados e um determinado medicamento é aprovado pelas agências regulatórias, é importante que se continue a monitorar os resultados obtidos com o emprego do medicamento na prática diária. Na fase IV da pesquisa, também conhecida como fase de vigilância pós-comercialização, o número de pacientes que recebem o medicamento pode chegar a milhares, tornando-se mais fácil a detecção de efeitos colaterais muito raros ou consequentes do uso do medicamento em longo prazo.

Durante a fase IV, as informações sobre toxicidade são captadas pelos relatos espontâneos de pacientes ou pelo trabalho ativo dos departamentos de farmacovigilância das indústrias farmacêuticas, de hospitais e de outros serviços de saúde.

Como é feita a avaliação do medicamento em estudo?

De maneira geral, o desenvolvimento de novos medicamentos requer que sejam avaliadas a sua eficácia e a sua toxicidade. Em oncologia, a eficácia de um medicamento pode ser medida por vários parâmetros. Um desses parâmetros é a taxa de resposta, que é a porcentagem de pacientes em quem o tratamento promove reduções tumorais acima de uma magnitude pré-especificada. Além disso, é comum que se avalie a eficácia de um medicamento contra o câncer medindo o tempo durante o qual o tratamento previne o avanço ou progressão da doença, chamado tempo livre de progressão. Por fim, em alguns casos é preciso medir o tempo de vida que resta ao paciente. Pela medida desse tempo, também é possível avaliar a taxa de cura promovida por um novo tratamento, para aqueles casos em que isso é possível.

Com relação à toxicidade, a avaliação é feita pela verificação da frequência e da intensidade dos efeitos colaterais. No caso da oncologia, existem escalas específicas que classificam os efeitos colaterais e seus graus de intensidade. Ao longo do estudo, o médico, a enfermeira de pesquisa e outros profissionais de saúde colhem do paciente e analisam as informações de toxicidade conforme as especificações dessas escalas.

Em alguns estudos, também são colhidos dados relativos à qualidade de vida, que é sempre um aspecto essencial do tratamento contra o câncer. A avaliação objetiva da qualidade de vida depende do uso de escalas e outros instrumentos para coleta de dados de maneira padronizada, para que possam ser feitas análises coerentes ao final do estudo.